A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo

Allan Kardec

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CAPÍTULO XI
GÊNESE ESPIRITUAL

Princípio espiritual. — União do princípio espiritual à matéria. — Hipótese sobre a origem do corpo humano. — Encarnação dos Espíritos. — Reencarnações. — Emigração e imigração dos Espíritos. — Raça adâmica. — Doutrina dos anjos decaídos e da perda do paraíso.

Princípio espiritual.

1. A existência do princípio espiritual é um fato que, por assim dizer, não precisa de demonstração, do mesmo modo que o da existência do princípio material. É, de certa forma, uma verdade axiomática. Ele se afirma pelos seus efeitos, como a matéria pelos que lhe são próprios.

De acordo com este princípio: “Todo efeito tendo uma causa, todo efeito inteligente há de ter uma causa inteligente”, ninguém há que não faça distinção entre o movimento mecânico de um sino que o vento agite e o movimento desse mesmo sino para dar um sinal, um aviso, atestando, só por isso, que obedece a um pensamento, a uma intenção. Ora, não podendo acudir a ninguém a ideia de atribuir pensamento à matéria do sino, tem­-se de concluir que o move uma inteligência à qual ele serve de instrumento para que ela se manifeste.

Pela mesma razão, ninguém terá a ideia de atribuir pensamento ao corpo de um homem morto. Se, pois, vivo, o homem pensa, é que há nele alguma coisa que não há quando está morto. A diferença que existe entre ele e o sino é que a inteligência, que faz com que este se mova, está fora dele, ao passo que está no homem a que faz que este obre.

2. O princípio espiritual é corolário da existência de Deus; sem esse princípio, Deus não teria razão de ser, visto que não se poderia conceber a soberana inteligência a reinar, pela eternidade em fora, unicamente sobre a matéria bruta, como não se poderia conceber que um monarca terreno, durante toda a sua vida, reinasse exclusivamente sobre pedras. Não se podendo admitir Deus sem os atributos essenciais da Divindade: a justiça e a bondade, inúteis seriam essas qualidades, se ele as houvesse de exercitar somente sobre a matéria.

3. Por outro lado, não se poderia conceber um Deus soberanamente justo e bom, a criar seres inteligentes e sensíveis, para lançá­-los ao nada, após alguns dias de sofrimento sem compensações, a recrear-­se na contemplação dessa sucessão indefinida de seres que nascem, sem que o hajam pedido, pensam por um instante, apenas para conhecerem a dor, e se extinguem para sempre, ao cabo de efêmera existência.

Sem a sobrevivência do ser pensante, os sofrimentos da vida seriam, da parte de Deus, uma crueldade sem objetivo. Eis por que o materialismo e o ateísmo são corolários um do outro; negando o efeito, não podem eles admitir a causa. O materialismo é, pois, consequente consigo mesmo, embora não o seja com a razão.

4. É inata no homem a ideia da perpetuidade do ser espiritual; essa ideia se acha nele em estado de intuição e de aspiração. O homem compreende que somente aí está a compensação às misérias da vida. Essa a razão por que sempre houve e haverá cada vez mais espiritualistas do que materialistas e mais devotos do que ateus.

À ideia intuitiva e à força do raciocínio o Espiritismo junta a sanção dos fatos, a prova material da existência do ser espiritual, da sua sobrevivência, da sua imortalidade e da sua individualidade. Torna precisa e define o que aquela ideia tinha de vago e de abstrato. Mostra o ser inteligente a atuar fora da matéria, quer depois, quer durante a vida do corpo.

5. São a mesma coisa o princípio espiritual e o princípio vital?

Partindo, como sempre, da observação dos fatos, diremos que, se o princípio vital fosse inseparável do princípio inteligente, haveria certa razão para que os confundíssemos. Mas, havendo, como há, seres que vivem e não pensam, quais as plantas; corpos humanos que ainda se revelam animados de vida orgânica quando já não há qualquer manifestação de pensamento; uma vez que no ser vivo se produzem movimentos vitais independentes de qualquer intervenção da vontade; que durante o sono a vida orgânica se conserva em plena atividade, enquanto que a vida intelectual por nenhum sinal exterior se manifesta, é cabível se admita que a vida orgânica reside num princípio inerente à matéria, independente da vida espiritual, que é inerente ao Espírito. Ora, desde que a matéria tem uma vitalidade independente do Espírito e que o Espírito tem uma vitalidade independente da matéria, evidente se torna que essa dupla vitalidade repousa em dois princípios diferentes. (Cap. X, n. os 16 a 19.)

6. Terá o princípio espiritual sua fonte de origem no elemento cósmico universal? Será ele apenas uma transformação, um modo de existência desse elemento, como a luz, a eletricidade, o calor, etc.?

Se fosse assim, o princípio espiritual sofreria as vicissitudes da matéria; extinguir­-se­-ia pela desagregação, como o princípio vital; momentânea seria, como a do corpo, a existência do ser inteligente que, então, ao morrer, volveria ao nada, ou, o que daria na mesma, ao todo universal. Seria, numa palavra, a sanção das doutrinas materialistas.

As propriedades sui generis que se reconhecem ao princípio espiritual provam que ele tem existência própria, pois que, se sua origem estivesse na matéria, aquelas propriedades lhe faltariam. Desde que a inteligência e o pensamento não podem ser atributos da matéria, chega-se, remontando dos efeitos à causa, à conclusão de que o elemento material e o elemento espiritual são os dois princípios constitutivos do universo. Individualizado, o elemento espiritual constitui os seres chamados Espíritos, como, individualizado, o elemento material constitui os diferentes corpos da natureza, orgânicos e inorgânicos.

7. Admitido o ser espiritual e não podendo ele proceder da matéria, qual a sua origem, seu ponto de partida?

Aqui, falecem absolutamente os meios de investigação, como para tudo o que diz respeito à origem das coisas. O homem apenas pode comprovar o que existe; acerca de tudo o mais, apenas lhe é dado formular hipóteses e, quer porque esse conhecimento esteja fora do alcance da sua inteligência atual, quer porque lhe seja inútil ou prejudicial presentemente, Deus não lho outorga, nem mesmo pela revelação.

O que Deus permite que seus mensageiros lhe digam e o que, aliás, o próprio homem pode deduzir do princípio da soberana justiça, atributo essencial da Divindade, é que todos procedem do mesmo ponto de partida; que todos são criados simples e ignorantes, com igual aptidão para progredir pelas suas atividades individuais; que todos atingirão o grau máximo da perfeição com seus esforços pessoais; que todos, sendo filhos do mesmo Pai, são objeto de igual solicitude; que nenhum há mais favorecido ou melhor dotado do que os outros, nem dispensado do trabalho imposto aos demais para atingirem a meta.

8. Ao mesmo tempo que criou, desde toda a eternidade, mundos materiais, Deus há criado, desde toda a eternidade, seres espirituais. Se assim não fora, os mundos materiais careceriam de finalidade. Mais fácil seria conceberem-­se os seres espirituais sem os mundos materiais, do que estes últimos sem aqueles. Os mundos materiais é que teriam de fornecer aos seres espirituais elementos de atividade para o desenvolvimento de suas inteligências.

9. Progredir é condição normal dos seres espirituais e a perfeição relativa o fim que lhes cumpre alcançar. Ora, havendo Deus criado desde toda a eternidade, e criando incessantemente, também desde toda a eternidade tem havido seres que atingiram o ponto culminante da escala. Antes que existisse a Terra, mundos sem conta haviam sucedido a mundos e, quando a Terra saiu do caos dos elementos, o espaço estava povoado de seres espirituais em todos os graus de adiantamento, desde os que surgiam para a vida até os que, desde toda a eternidade, haviam tomado lugar entre os puros Espíritos, vulgarmente chamados anjos.

União do princípio espiritual à matéria.

10. Tendo a matéria que ser objeto do trabalho do Espírito para desenvolvimento de suas faculdades, era necessário que ele pudesse atuar sobre ela, pelo que veio habitá­-la, como o lenhador habita a floresta. Tendo a matéria que ser, no mesmo tempo, objeto e instrumento do trabalho, Deus, em vez de unir o Espírito à pedra rígida, criou, para seu uso, corpos organizados, flexíveis, capazes de receber todas as impulsões da sua vontade e de se prestarem a todos os seus movimentos.

O corpo é, pois, simultaneamente, o envoltório e o instrumento do Espírito e, à medida que este adquire novas aptidões, reveste outro invólucro apropriado ao novo gênero de trabalho que lhe cabe executar, tal qual se faz com o operário, a quem é dado instrumento menos grosseiro, à proporção que ele se vai mostrando apto a executar obra mais bem cuidada.

11. Para ser mais exato, é preciso dizer que é o próprio Espírito que modela o seu envoltório e o apropria às suas novas necessidades; aperfeiçoa­-o e lhe desenvolve e completa o organismo, à medida que experimenta a necessidade de manifestar novas faculdades; numa palavra, talha­-o de acordo com a sua inteligência. Deus lhe fornece os materiais; cabe-­lhe a ele empregá-­los. É assim que as raças adiantadas têm um organismo ou, se quiserem, um aparelhamento cerebral mais aperfeiçoado do que as raças primitivas. Desse modo igualmente se explica o cunho especial que o caráter do Espírito imprime aos traços da fisionomia e às linhas do corpo. (Cap. VIII, n. o 7: Alma da Terra.)

12. Desde que um Espírito nasce para a vida espiritual, tem, por adiantar­-se, que fazer uso de suas faculdades, rudimentares a princípio. Por isso é que reveste um envoltório adequado ao seu estado de infância intelectual, envoltório que ele abandona para tomar outro, à proporção que se lhe aumentam as forças. Ora como em todos os tempos houve mundos e esses mundos deram nascimento a corpos organizados próprios a receber Espíritos, em todos os tempos os Espíritos, qualquer que fosse o grau de adiantamento que houvessem alcançado, encontraram os elementos necessários à sua vida carnal.

13. Por ser exclusivamente material, o corpo sofre as vicissitudes da matéria. Depois de funcionar por algum tempo, ele se desorganiza e decompõe. O princípio vital, não mais encontrando elemento para sua atividade, se extingue e o corpo morre. O Espírito, para quem, este, carente de vida, se torna inútil, deixa­-o, como se deixa uma casa em ruínas, ou uma roupa imprestável.

14. O corpo, conseguintemente, não passa de um envoltório destinado a receber o Espírito. Desde então, pouco importam a sua origem e os materiais que entraram na sua construção. Seja ou não o corpo do homem uma criação especial, o que não padece dúvida é que tem a formá-­lo os mesmos elementos que o dos animais, a animá­-lo o mesmo princípio vital, ou, por outra, a aquecê-­lo o mesmo fogo, como tem a iluminá-­lo a mesma luz e se acha sujeito às mesmas vicissitudes e às mesmas necessidades. É um ponto este que não sofre contestação.

A não se considerar, pois, senão a matéria, abstraindo do Espírito, o homem nada tem que o distinga do animal. Tudo, porém, muda de aspecto, logo que se estabelece distinção entre a habitação e o habitante.

Ou numa choupana, ou envergando as vestes de um campônio, um nobre senhor não deixa de o ser. O mesmo se dá com o homem: não é a sua vestidura de carne que o coloca acima do bruto e faz dele um ser à parte; é o seu ser espiritual, seu Espírito.

Hipótese sobre a origem do corpo humano.

15. Da semelhança, que há, de formas exteriores entre o corpo do homem e o do macaco, concluíram alguns fisiologistas que o primeiro é apenas uma transformação do segundo. Nada aí há de impossível, nem o que, se assim for, afete a dignidade do homem. Bem pode dar-­se que corpos de macaco tenham servido de vestidura aos primeiros Espíritos humanos, forçosamente pouco adiantados, que viessem encarnar na Terra, sendo essa vestidura mais apropriada às suas necessidades e mais adequadas ao exercício de suas faculdades, do que o corpo de qualquer outro animal. Em vez de se fazer para o Espírito um invólucro especial, ele teria achado um já pronto. Vestiu­-se então da pele do macaco, sem deixar de ser Espírito humano, como o homem não raro se reveste da pele de certos animais, sem deixar de ser homem.

Fique bem entendido que aqui unicamente se trata de uma hipótese, de modo algum posta como princípio, mas apresentada apenas para mostrar que a origem do corpo em nada prejudica o Espírito, que é o ser principal, e que a semelhança do corpo do homem com o do macaco não implica paridade entre o seu Espírito e o do macaco.

16. Admitida essa hipótese, pode dizer­-se que, sob a influência e por efeito da atividade intelectual do seu novo habitante, o envoltório se modificou, embelezou­-se nas particularidades, conservando a forma geral do conjunto (n. o 11). Melhorados, os corpos, pela procriação, se reproduziram nas mesmas condições, como sucede com as árvores de enxerto. Deram origem a uma espécie nova, que pouco a pouco se afastou do tipo primitivo, à proporção que o Espírito progrediu. O espírito macaco, que não foi aniquilado, continuou a procriar, para seu uso, corpos de macaco, do mesmo modo que o fruto da árvore silvestre reproduz árvores dessa espécie, e o Espírito humano procriou corpos de homem, variantes do primeiro molde em que ele se meteu. O tronco se bifurcou: produziu um ramo, que por sua vez se tornou tronco.

Como em a natureza não há transições bruscas, é provável que os primeiros homens aparecidos na Terra pouco diferissem do macaco pela forma exterior e não muito também pela inteligência. Em nossos dias ainda há selvagens que, pelo comprimento dos braços e dos pés e pela conformação da cabeça, têm tanta parecença com o macaco, que só lhes falta ser peludos, para se tornar completa a semelhança.

Encarnação dos Espíritos.

17. O Espiritismo ensina de que maneira se opera a união do Espírito com o corpo, na encarnação.

Pela sua essência espiritual, o Espírito é um ser indefinido, abstrato, que não pode ter ação direta sobre a matéria, sendo­-lhe indispensável um intermediário, que é o envoltório fluídico, o qual, de certo modo, faz parte integrante dele. É semimaterial esse envoltório, isto é, pertence à matéria pela sua origem e à espiritualidade pela sua natureza etérea. Como toda matéria, ele é extraído do fluido cósmico universal que, nessa circunstância, sofre uma modificação especial. Esse envoltório, denominado perispírito, faz de um ser abstrato, do Espírito, um ser concreto, definido, apreensível pelo pensamento. Torna­-o apto a atuar sobre a matéria tangível, conforme se dá com todos os fluidos imponderáveis, que são, como se sabe, os mais poderosos motores.

O fluido perispirítico constitui, pois, o traço de união entre o Espírito e a matéria. Enquanto aquele se acha unido ao corpo, serve-­lhe ele de veículo ao pensamento, para transmitir o movimento às diversas partes do organismo, as quais atuam sob a impulsão da sua vontade e para fazer que repercutam no Espírito as sensações que os agentes exteriores produzam. Servem-­he de fios condutores os nervos como, no telégrafo, ao fluido elétrico serve de condutor o fio metálico.

18. Quando o Espírito tem de encarnar num corpo humano em vias de formação, um laço fluídico, que mais não é do que uma expansão do seu perispírito, o liga ao gérmen que o atrai por uma força irresistível, desde o momento da concepção. À medida que o gérmen se desenvolve, o laço se encurta. Sob a influência do princípio vito­material do gérmen, o perispírito, que possui certas propriedades da matéria, se une, molécula a molécula, ao corpo em formação, donde o poder dizer­-se que o Espírito, por intermédio do seu perispírito, se enraíza, de certa maneira, nesse gérmen, como uma planta na terra. Quando o gérmen chega ao seu pleno desenvolvimento, completa é a união; nasce então o ser para a vida exterior.

Por um efeito contrário, a união do perispírito e da matéria carnal, que se efetuara sob a influência do princípio vital do gérmen, cessa, desde que esse princípio deixa de atuar, em consequência da desorganização do corpo. Mantida que era por uma força atuante, tal união se desfaz, logo que essa força deixa de atuar. Então, o perispírito se desprende, molécula a molécula, conforme se unira, e ao Espírito é restituída a liberdade. Assim, não é a partida do Espírito que causa a morte do corpo; esta é que determina a partida do Espírito.

Dado que, um instante após a morte, completa é a integração do Espírito; que suas faculdades adquirem até maior poder de penetração, ao passo que o princípio de vida se acha extinto no corpo, provado evidentemente fica que são distintos o princípio vital e o princípio espiritual.

19. O Espiritismo, pelos fatos cuja observação ele faculta, dá a conhecer os fenômenos que acompanham essa separação, que, às vezes, é rápida, fácil, suave e insensível, ao passo que doutras é lenta, laboriosa, horrivelmente penosa, conforme o estado moral do Espírito, e pode durar meses inteiros.

20. Um fenômeno particular, que a observação igualmente assinala, acompanha sempre a encarnação do Espírito. Desde que este é apanhado no laço fluídico que o prende ao gérmen, entra em estado de perturbação, que aumenta, à medida que o laço se aperta, perdendo o Espírito, nos últimos momentos, toda a consciência de si próprio, de sorte que jamais presencia o seu nascimento. Quando a criança respira, começa o Espírito a recobrar as faculdades, que se desenvolvem à proporção que se formam e consolidam os órgãos que lhes hão de servir às manifestações.

21. Mas, ao mesmo tempo que o Espírito recobra a consciência de si mesmo, perde a lembrança do seu passado, sem perder as faculdades, as qualidades e as aptidões anteriormente adquiridas, que haviam ficado temporariamente em estado de latência e que, voltando à atividade, vão ajudá-­lo a fazer mais e melhor do que antes. Ele renasce qual se fizera pelo seu trabalho anterior; o seu renascimento lhe é um novo ponto de partida, um novo degrau a subir. Ainda aí a bondade do Criador se manifesta, porquanto, adicionada aos amargores de uma nova existência, a lembrança, muitas vezes aflitiva e humilhante, do passado, poderia turbá-­lo e lhe criar embaraços. Ele apenas se lembra do que aprendeu, por lhe ser isso útil. Se às vezes lhe é dado ter uma intuição dos acontecimentos passados, essa intuição é como a lembrança de um sonho fugitivo. Ei-­lo, pois, novo homem por mais antigo que seja como Espírito. Adota novos processos, auxiliado pelas suas aquisições precedentes. Quando retorna à vida espiritual, seu passado se lhe desdobra diante dos olhos e ele julga de como empregou o tempo, se bem ou mal.

22. Não há, portanto, solução de continuidade na vida espiritual, sem embargo do esquecimento do passado. Cada Espírito é sempre o mesmo eu, antes, durante e depois da encarnação, sendo esta, apenas, uma fase da sua existência. O próprio esquecimento se dá tão­-só no curso da vida exterior de relação. Durante o sono, desprendido, em parte, dos liames carnais, restituído à liberdade e à vida espiritual, o Espírito se lembra, pois que, então, já não tem a visão tão obscurecida pela matéria.

23. Tomando­-se a humanidade no grau mais ínfimo da escala espiritual, como se encontra entre os mais atrasados selvagens, perguntar­-se­-á se é aí o ponto inicial da alma humana.

Na opinião de alguns filósofos espiritualistas, o princípio inteligente, distinto do princípio material, se individualiza e elabora, passando pelos diversos graus da animalidade. É aí que a alma se ensaia para a vida e desenvolve, pelo exercício, suas primeiras faculdades. Esse seria para ela, por assim dizer, o período de incubação. Chegada ao grau de desenvolvimento que esse estado comporta, ela recebe as faculdades especiais que constituem a alma humana. Haveria assim filiação espiritual do animal para o homem, como há filiação corporal.

Este sistema, fundado na grande lei de unidade que preside à criação, corresponde, forçoso é convir, à justiça e à bondade do Criador; dá uma saída, uma finalidade, um destino aos animais, que deixam então de formar uma categoria de seres deserdados, para terem, no futuro que lhes está reservado, uma compensação a seus sofrimentos. O que constitui o homem espiritual não é a sua origem: são os atributos especiais de que ele se apresenta dotado ao entrar na humanidade, atributos que o transformam, tornando-­o um ser distinto, como o fruto saboroso é distinto da raiz amarga que lhe deu origem. Por haver passado pela fieira da animalidade, o homem não deixaria de ser homem; já não seria animal, como o fruto não é a raiz, como o sábio não é o feto informe que o pôs no mundo.

Mas, este sistema levanta múltiplas questões, cujos prós e contras não é oportuno discutir aqui, como não o é o exame das diferentes hipóteses que se têm formulado sobre este assunto. Sem, pois, pesquisarmos a origem do Espírito, sem procurarmos conhecer as fieiras pelas quais haja ele, porventura, passado, tomamo­-lo ao entrar na humanidade, no ponto em que, dotado de senso moral e de livre­-arbítrio, começa a pesar-­lhe a responsabilidade dos seus atos.

24. A obrigação que tem o Espírito encarnado de prover ao alimento do corpo, à sua segurança, ao seu bem-estar, o força a empregar suas faculdades em investigações, a exercitá-­las e desenvolvê-­las. Útil, portanto, ao seu adiantamento é a sua união com a matéria. Daí o constituir uma necessidade a encarnação. Além disso, pelo trabalho inteligente que ele executa em seu proveito, sobre a matéria, auxilia a transformação e o progresso material do globo que lhe serve de habitação. É assim que, progredindo, colabora na obra do Criador, da qual se torna fator inconsciente.

25. Todavia, a encarnação do Espírito não é constante, nem perpétua: é transitória. Deixando um corpo, ele não retoma imediatamente outro. Durante mais ou menos considerável lapso de tempo, vive da vida espiritual, que é sua vida normal, de tal sorte que insignificante vem a ser o tempo que lhe duram as encarnações, se comparado ao que passa no estado de Espírito livre.

No intervalo de suas encarnações, o Espírito progride igualmente, no sentido de que aplica ao seu adiantamento os conhecimentos e a experiência que alcançou no decorrer da vida corporal; examina o que fez enquanto habitou a Terra, passa em revista o que aprendeu, reconhece suas faltas, traça planos e toma resoluções pelas quais conta guiar-­se em nova existência, com a ideia de melhor se conduzir. Desse jeito, cada existência representa um passo para a frente no caminho do progresso, uma espécie de escola de aplicação.

26. Normalmente, a encarnação não é uma punição para o Espírito, conforme pensam alguns, mas uma condição inerente à inferioridade do Espírito e um meio de progredir. ( O Céu e o Inferno, cap. III, n.os 8 e seguintes.)

À medida que progride moralmente, o Espírito se desmaterializa, isto é, depura-­se, com o subtrair­-se à influência da matéria; sua vida se espiritualiza, suas faculdades e percepções se ampliam; sua felicidade se torna proporcional ao progresso realizado. Entretanto, como atua em virtude do seu livre-­arbítrio, pode ele, por negligência ou má vontade, retardar o seu avanço; prolonga, conseguintemente, a duração de suas encarnações materiais, que, então, se lhe tornam uma punição, pois que, por falta sua, ele permanece nas categorias inferiores, obrigado a recomeçar a mesma tarefa. Depende, pois, do Espírito abreviar, pelo trabalho de depuração executado sobre si mesmo, a extensão do período das encarnações.

27. O progresso material de um planeta acompanha o progresso moral de seus habitantes. Ora, sendo incessante, como é, a criação dos mundos e dos Espíritos e progredindo estes mais ou menos rapidamente, conforme o uso que façam do livre­-arbítrio, segue-­se que há mundos mais ou menos antigos, em graus diversos de adiantamento físico e moral, onde é mais ou menos material a encarnação e onde, por conseguinte, o trabalho, para os Espíritos, é mais ou menos rude. Deste ponto de vista, a Terra é um dos menos adiantados. Povoada de Espíritos relativamente inferiores, a vida corpórea é aí mais penosa do que noutros orbes, havendo-­os também mais atrasados, onde a existência é ainda mais penosa do que na Terra e em confronto com os quais esta seria, relativamente, um mundo ditoso.

28. Quando, em um mundo, os Espíritos hão realizado a soma de progresso que o estado desse mundo comporta, deixam-­no para encarnar em outro mais adiantado, onde adquiram novos conhecimentos e assim por diante, até que, não lhes sendo mais de proveito algum a encarnação em corpos materiais, passam a viver exclusivamente da vida espiritual, em a qual continuam a progredir, mas noutro sentido e por outros meios. Chegados ao ponto culminante do progresso, gozam da suprema felicidade. Admitidos nos conselhos do Onipotente, conhecem-­lhe o pensamento e se tornam seus mensageiros, seus ministros diretos no governo dos mundos, tendo sob suas ordens os Espíritos de todos os graus de adiantamento.

Assim, qualquer que seja o grau em que se achem na hierarquia espiritual, do mais ínfimo ao mais elevado, têm eles suas atribuições no grande mecanismo do universo; todos são úteis ao conjunto, ao mesmo tempo que a si próprios. Aos menos adiantados, como a simples serviçais, incumbe o desempenho, a princípio inconsciente, depois, cada vez mais inteligente, de tarefas materiais. Por toda parte, no mundo espiritual, atividade, em nenhum ponto a ociosidade inútil.

A coletividade dos Espíritos constitui, de certo modo, a alma do universo. Por toda parte, o elemento espiritual é que atua em tudo, sob o influxo do pensamento divino. Sem esse elemento, só há matéria inerte, carente de finalidade, de inteligência, tendo por único motor as forças materiais, cuja exclusividade deixa insolúveis uma imensidade de problemas. Com a ação do elemento espiritual individualizado, tudo tem uma finalidade, uma razão de ser, tudo se explica. Prescindindo da espiritualidade, o homem esbarra em dificuldades insuperáveis.

29. Quando a Terra se encontrou em condições climáticas apropriadas à existência da espécie humana, encarnaram nela Espíritos humanos. Donde vinham? Quer eles tenham sido criados naquele momento, quer tenham procedido, completamente formados, do espaço, de outros mundos, ou da própria Terra, a presença deles nesta, a partir de certa época, é um fato, pois que antes deles só animais havia. Revestiram­ se de corpos adequados às suas necessidades especiais, às suas aptidões, e que, fisiologicamente, tinham as características da animalidade. Sob a influência deles e por meio do exercício de suas faculdades, esses corpos se modificaram e aperfeiçoaram: é o que a observação comprova. Deixemos então de lado a questão da origem, insolúvel por enquanto; consideremos o Espírito, não em seu ponto de partida, mas no momento em que, manifestando­-se nele os primeiros germens do livre­-arbítrio e do senso moral o vemos a desempenhar o seu papel humanitário, sem cogitarmos do meio onde haja transcorrido o período de sua infância, ou, se o preferirem, de sua incubação. Malgrado à analogia do seu envoltório com o dos animais, poderemos diferençá-­lo destes últimos pelas faculdades intelectuais e morais que o caracterizam, como, debaixo das mesmas vestes grosseiras, distinguimos o rústico do homem civilizado.

30. Conquanto devessem ser pouco adiantados os primeiros que vieram, pela razão mesma de terem de encarnar em corpos muito imperfeitos, diferenças sensíveis haveria decerto entre seus caracteres e aptidões. Os que se assemelhavam, naturalmente se agruparam por analogia e simpatia. Achou­-se a Terra, assim, povoada de Espíritos de diversas categorias, mais ou menos aptos ou rebeldes ao progresso. Recebendo os corpos a impressão do caráter do Espírito e procriando­-se esses corpos na conformidade dos respectivos tipos, resultaram daí diferentes raças, quer quanto ao físico, quer quanto ao moral (n. o 11). Continuando a encarnar entre os que se lhes assemelhavam, os Espíritos similares perpetuaram o caráter distintivo, físico e moral, das raças e dos povos, caráter que só com o tempo desaparece, mediante a fusão e o progresso deles. ( Revue spirite, julho de 1860, página 198: “Frenologia e Fisiognomonia”.)

31. Podem comparar-­se os Espíritos que vieram povoar a Terra a esses bandos de emigrantes de origens diversas, que vão estabelecer­-se numa terra virgem, onde encontram madeira e pedra para erguerem habitações, cada um dando à sua um cunho especial, de acordo com o grau do seu saber e com o seu gênio particular. Grupam-­se então por analogia de origens e de gostos, acabando os grupos por formar tribos, em seguida povos, cada qual com costumes e caracteres próprios.

32. Não foi, portanto, uniforme o progresso em toda a espécie humana. Como era natural, as raças mais inteligentes adiantaram­-se às outras, mesmo sem se levar em conta que muitos Espíritos recém­-nascidos para a vida espiritual, vindo encarnar na Terra juntamente com os primeiros aí chegados, tornaram ainda mais sensível a diferença em matéria de progresso. Fora, com efeito, impossível atribuir­-se a mesma ancianidade de criação aos selvagens, que mal se distinguem do macaco, e aos chineses, nem, ainda menos, aos europeus civilizados.

Entretanto, os Espíritos dos selvagens também fazem parte da humanidade e alcançarão um dia o nível em que se acham seus irmãos mais velhos. Mas, sem dúvida, não será em corpos da mesma raça física, impróprios a um certo desenvolvimento intelectual e moral. Quando o instrumento já não estiver em correspondência com o progresso que hajam alcançado, eles emigrarão daquele meio, para encarnar noutro mais elevado e assim por diante, até que tenham conquistado todas as graduações terrestres, ponto em que deixarão a Terra, para passar a mundos mais avançados. ( Revue spirite, abril de 1862, pág. 97: “Perfectibilidade da raça negra”.)

Reencarnações.

33. O princípio da reencarnação é uma consequência necessária da lei de progresso. Sem a reencarnação, como se explicaria a diferença que existe entre o presente estado social e o dos tempos de barbárie? Se as almas são criadas ao mesmo tempo que os corpos, as que nascem hoje são tão novas, tão primitivas, quanto as que viviam há mil anos; acrescentemos que nenhuma conexão haveria entre elas, nenhuma relação necessária; seriam de todo estranhas umas às outras. Por que, então, as de hoje haviam de ser melhor dotadas por Deus, do que as que as precederam? Por que têm aquelas melhor compreensão? Por que possuem instintos mais apurados, costumes mais brandos? Por que têm a intuição de certas coisas, sem as haverem aprendido? Duvidamos de que alguém saia desses dilemas, a menos admita que Deus cria almas de diversas qualidades, de acordo com os tempos e lugares, proposição inconciliável com a ideia de uma justiça soberana. (Cap. II, n. o 10.)

Admiti, ao contrário, que as almas de agora já viveram em tempos distantes; que possivelmente foram bárbaras como os séculos em que estiveram no mundo, mas que progrediram; que para cada nova existência trazem o que adquiriram nas existências precedentes; que, por conseguinte, as dos tempos civilizados não são almas criadas mais perfeitas, porém que se aperfeiçoaram por si mesmas com o tempo, e tereis a única explicação plausível da causa do progresso social. ( O Livro dos Espíritos, Parte 2.ª, caps. IV e V.)

34. Pensam alguns que as diferentes existências da alma se efetuam, passando elas de mundo em mundo e não num mesmo orbe, onde cada Espírito viria uma única vez.

Seria admissível esta doutrina, se todos os habitantes da Terra estivessem no mesmo nível intelectual e moral. Eles então só poderiam progredir indo de um mundo a outro e nenhuma utilidade lhes adviria da encarnação na Terra. Desde que aí se notam a inteligência e a moralidade em todos os graus, desde a selvajaria que beira o animal até a mais adiantada civilização, é evidente que esse mundo constitui um vasto campo de progresso. Por que haveria o selvagem de ir procurar alhures o grau de progresso logo acima do em que ele está, quando esse grau se lhe acha ao lado e assim sucessivamente? Por que não teria podido o homem adiantado fazer os seus primeiros estágios senão em mundos inferiores, quando ao seu derredor estão seres análogos aos desses mundos? quando, não só de povo a povo, mas no seio do mesmo povo e da mesma família, há diferentes graus de adiantamento? Se fosse assim, Deus houvera feito coisa inútil, colocando lado a lado a ignorância e o saber, a barbaria e a civilização, o bem e o mal, quando precisamente esse contacto é que faz que os retardatários avancem.

Não há, pois, necessidade de que os homens mudem de mundo a cada etapa de aperfeiçoamento, como não há de que o estudante mude de colégio para passar de uma classe a outra. Longe de ser isso vantagem para o progresso, ser-­lhe­-ia um entrave, porquanto o Espírito ficaria privado do exemplo que lhe oferece a observação do que ocorre nos graus mais elevados e da possibilidade de reparar seus erros no mesmo meio e em presença dos a quem ofendeu, possibilidade que é, para ele, o mais poderoso modo de realizar o seu progresso moral. Após curta coabitação, dispersando-­se os Espíritos e tornando-­se estranhos uns aos outros, romper-se-­iam os laços de família, à falta de tempo para se consolidarem.

Ao inconveniente moral se juntaria um inconveniente material. A natureza dos elementos, as leis orgânicas, as condições de existência variam, de acordo com os mundos; sob esse aspecto, não há dois perfeitamente idênticos. Os tratados de física, de química, de anatomia, de medicina, de botânica, etc., para nada serviriam nos outros mundos; entretanto, não fica perdido o que neles se aprende; não só isso desenvolve a inteligência, como também as ideias que se colhem de tais obras auxiliam a aquisição de outras. (Cap. VI, n. os 61 e seguintes.) Se apenas uma única vez fizesse o Espírito a sua aparição, frequentemente brevíssima, num mesmo mundo, em cada imigração ele se acharia em condições inteiramente diversas; operaria de cada vez sobre elementos novos, com força e segundo leis que desconheceria, antes de ter tido tempo de elaborar os elementos conhecidos, de os estudar, de os aplicar. Teria de fazer, de cada vez, um novo aprendizado e essas mudanças contínuas representariam um obstáculo ao progresso. O Espírito, portanto, tem que permanecer no mesmo mundo, até que haja adquirido a soma de conhecimentos e o grau de perfeição que esse mundo comporta. (N. o 31.)

Que os Espíritos deixem, por um mundo mais adiantado, aquele do qual nada mais podem auferir, é como deve ser e é. Tal o princípio. Se alguns há que antecipadamente deixam o mundo em que vinham encarnando, é isso devido a causas individuais que Deus pesa em sua sabedoria.

Tudo na criação tem uma finalidade, sem o que Deus não seria nem prudente, nem sábio. Ora, se a Terra se destinasse a ser uma única etapa do progresso para cada indivíduo, que utilidade haveria, para os Espíritos das crianças que morrem em tenra idade, vir passar aí alguns anos, alguns meses, algumas horas, durante os quais nada podem haurir dele? O mesmo ocorre se pondere com referência aos idiotas e aos cretinos. Uma teoria somente é boa sob a condição de resolver todas as questões a que diz respeito. A questão das mortes prematuras há sido uma pedra de tropeço para todas as doutrinas, exceto para a doutrina espírita, que a resolveu de maneira racional e completa.

Para o progresso daqueles que cumprem na Terra uma missão normal, há vantagem real em volverem ao mesmo meio para aí continuarem o que deixaram inacabado, muitas vezes na mesma família ou em contacto com as mesmas pessoas, a fim de repararem o mal que tenham feito, ou de sofrerem a pena de talião.

Emigrações e imigrações dos Espíritos.

35. No intervalo de suas existências corporais, os Espíritos se encontram no estado de erraticidade e formam a população espiritual ambiente da Terra. Pelas mortes e pelos nascimentos, as duas populações, terrestre e espiritual, deságuam incessantemente uma na outra. Há, pois, diariamente, emigrações do mundo corpóreo para o mundo espiritual e imigrações deste para aquele: é o estado normal.

36. Em certas épocas, determinadas pela sabedoria divina, essas emigrações e imigrações se operam por massas mais ou menos consideráveis, em virtude das grandes revoluções que lhes ocasionam a partida simultânea em quantidades enormes, logo substituídas por equivalentes quantidades de encarnações. Os flagelos destruidores e os cataclismos devem, portanto, considerar-­se como ocasiões de chegadas e partidas coletivas, meios providenciais de renovamento da população corporal do globo, de ela se retemperar pela introdução de novos elementos espirituais mais depurados. Na destruição, que por essas catástrofes se verifica, de grande número de corpos, nada mais há do que rompimento de vestiduras; nenhum Espírito perece; eles apenas mudam de planos; em vez de partirem isoladamente, partem em bandos, essa a única diferença, visto que, ou por uma causa ou por outra, fatalmente têm que partir, cedo ou tarde.

As renovações rápidas, quase instantâneas, que se produzem no elemento espiritual da população, por efeito dos flagelos destruidores, apressam o progresso social; sem as emigrações e imigrações que de tempos a tempos lhe vêm dar violento impulso, só com extrema lentidão esse progresso se realizaria.

É de notar­-se que todas as grandes calamidades que dizimam as populações são sempre seguidas de uma era de progresso de ordem física, intelectual, ou moral e, por conseguinte, no estado social das nações que as experimentam. É que elas têm por fim operar uma remodelação na população espiritual, que é a população normal e ativa do globo.

37. Essa transfusão, que se efetua entre a população encarnada e desencarnada de um planeta, igualmente se efetua entre os mundos, quer individualmente, nas condições normais, quer por massas, em circunstâncias especiais. Há, pois, emigrações e imigrações coletivas de um mundo para outro, donde resulta a introdução, na população de um deles, de elementos inteiramente novos. Novas raças de Espíritos, vindo misturar­-se às existentes, constituem novas raças de homens. Ora, como os Espíritos nunca mais perdem o que adquiriram, consigo trazem eles sempre a inteligência e a intuição dos conhecimentos que possuem, o que faz que imprimam o caráter que lhes é peculiar à raça corpórea que venham animar. Para isso, só necessitam de que novos corpos sejam criados para serem por eles usados. Uma vez que a espécie corporal existe, eles encontram sempre corpos prontos para os receber. Não são mais, portanto, do que novos habitantes. Em chegando à Terra, integram-­lhe, a princípio, a população espiritual; depois, encarnam, como os outros.

Raça adâmica.

38. De acordo com o ensino dos Espíritos, foi uma dessas grandes imigrações, ou, se quiserem, uma dessas colônias de Espíritos, vinda de outra esfera, que deu origem à raça simbolizada na pessoa de Adão e, por essa razão mesma, chamada raça adâmica. Quando ela aqui chegou, a Terra já estava povoada desde tempos imemoriais, como a América, quando aí chegaram os europeus.

Mais adiantada do que as que a tinham precedido neste planeta, a raça adâmica é, com efeito, a mais inteligente, a que impele ao progresso todas as outras. A Gênese no-­la mostra, desde os seus primórdios, industriosa, apta às artes e às ciências, sem haver passado aqui pela infância espiritual, o que não se dá com as raças primitivas, mas concorda com a opinião de que ela se compunha de Espíritos que já tinham progredido bastante. Tudo prova que a raça adâmica não é antiga na Terra e nada se opõe a que seja considerada como habitando este globo desde apenas alguns milhares de anos, o que não estaria em contradição nem com os fatos geológicos, nem com as observações antropológicas, antes tenderia a confirmá­-las.

39. No estado atual dos conhecimentos, não é admissível a doutrina segundo a qual todo o gênero humano procede de uma individualidade única, de há seis mil anos somente a esta parte. Tomadas à ordem física e à ordem moral, as considerações que a contradizem se resumem no seguinte:

Do ponto de vista fisiológico, algumas raças apresentam característicos tipos particulares, que não permitem se lhes assinale uma origem comum. Há diferenças que evidentemente não são simples efeito do clima, pois que os brancos que se reproduzem nos países dos negros não se tornam negros e reciprocamente. O ardor do Sol tosta e brune a epiderme, porém nunca transformou um branco em negro, nem lhe achatou o nariz, ou mudou a forma dos traços da fisionomia, nem lhe tornou lanzudo e encarapinhado o cabelo comprido e sedoso. Sabe­-se hoje que a cor do negro provém de um tecido especial subcutâneo, peculiar à espécie.

Há­-se, pois, de considerar as raças negras, mongólicas, caucásicas como tendo origem própria, como tendo nascido simultânea ou sucessivamente em diversas partes do globo. O cruzamento delas produziu as raças mistas secundárias. Os caracteres fisiológicos das raças primitivas constituem indício evidente de que elas procedem de tipos especiais. As mesmas considerações se aplicam, conseguintemente, assim aos homens, quanto aos animais, no que concerne à pluralidade dos troncos. (Cap. X, n. os 2 e seguintes.)

40. Adão e seus descendentes são apresentados na Gênese como homens sobremaneira inteligentes, pois que, desde a segunda geração, constroem cidades, cultivam a terra, trabalham os metais. São rápidos e duradouros seus progressos nas artes e nas ciências. Não se conceberia, portanto, que esse tronco tenha tido, como ramos, numerosos povos tão atrasados, de inteligência tão rudimentar, que ainda em nossos dias rastejam a animalidade, que hajam perdido todos os traços e, até, a menor lembrança do que faziam seus pais. Tão radical diferença nas aptidões intelectuais e no desenvolvimento moral atesta, com evidência não menor, uma diferença de origem.

41. Independentemente dos fatos geológicos, da população do globo se tira a prova da existência do homem na Terra, antes da época fixada pela Gênese. Sem falar da cronologia chinesa, que remonta, dizem, a trinta mil anos, documentos mais autênticos provam que o Egito, a Índia e outros países já eram povoados e floresciam, pelo menos, três mil anos antes da era cristã, mil anos, portanto, depois da criação do primeiro homem, segundo a cronologia bíblica. Documentos e observações recentes não consentem hoje dúvida alguma quanto às relações que existiram entre a América e os antigos egípcios, donde se tem de concluir que essa região já era povoada naquela época. Forçoso então seria admitir­-se que, em mil anos, a posteridade de um único homem pôde povoar a maior parte da Terra. Ora, semelhante fecundidade estaria em antagonismo com todas as leis antropológicas.*


* Na Exposição Universal de 1867, apresentaram-­se antiguidades do México que nenhuma dúvida deixam sobre as relações que os povos desse país tiveram com os antigos egípcios. O Sr. Léon Méchedin, numa nota afixada no templo mexicano da Exposição, assim se exprimia:

“Não é conveniente se publiquem, prematuramente, as descobertas feitas, do ponto de vista da história do homem, pela recente expedição científica do México. Entretanto, nada se opõe a que o público saiba, desde já, que a exploração assinalou a existência de grande numero de cidades desaparecidas com o tempo, mas que a picareta e o incêndio podem retirar de suas mortalhas. As escavações puseram a descoberto, por toda parte, três camadas de civilizações, que dão ao mundo americano uma antiguidade fabulosa.”

É assim que todos os dias a ciência opõe o desmentido dos fatos à doutrina que limita a 6.000 anos a aparição do homem na Terra e pretende fazê­-lo derivar de um tronco único.


42. Ainda mais evidente se torna a impossibilidade, desde que se admita, com a Gênese, que o dilúvio destruiu todo o gênero humano, com exceção de Noé e de sua família, que não era numerosa, no ano de 1656 do mundo, ou seja, 2.348 anos antes da era cristã. Em realidade, pois, daquele patriarca é que dataria o povoamento da Terra. Ora, quando os hebreus se estabeleceram no Egito, 612 anos após o dilúvio, já o Egito era um poderoso império, que teria sido povoado, sem falar de outros países, em menos de seis séculos, só pelos descendentes de Noé, o que não é admissível.

Notemos, de passagem, que os egípcios acolheram os hebreus como estrangeiros. Seria de espantar que houvessem perdido a lembrança de uma tão próxima comunidade de origem, quando conservaram religiosamente os monumentos de sua história.

Rigorosa lógica, com os fatos a corroborá-­la da maneira mais peremptória, mostra, pois, que o homem está na Terra desde tempo indeterminado, muito anterior à época que a Gênese assinala. O mesmo ocorre com a diversidade dos troncos primitivos, porquanto demonstrar a impossibilidade de uma proposição é demonstrar a proposição contrária. Se a geologia descobrir traços autênticos da presença do homem antes do grande período diluviano, ainda mais completa é a demonstração.

Doutrina dos anjos decaídos e da perda do paraíso.*


* Quando, na Revue spirite de janeiro de 1862, publicamos um artigo sobre a interpretação da doutrina dos anjos decaídos, apresentamos essa teoria como simples hipótese, sem outra autoridade afora a de uma opinião pessoal controversível, porque nos faltavam então elementos bastantes para uma afirmação peremptória. Expusemo­-la a título de ensaio, tendo em vista provocar o exame da questão, decidido, porém, a abandoná-­la ou modificá-­la, se fosse preciso. Presentemente, essa teoria já passou pela prova do controle universal. Não só foi bem aceita pela maioria dos espíritas, como a mais racional e a mais concorde com a soberana justiça de Deus, mas também foi confirmada pela generalidade das instruções que os Espíritos deram sobre o assunto. O mesmo se verificou com a que concerne à origem da raça adâmica.


43. Os mundos progridem, fisicamente, pela elaboração da matéria e, moralmente, pela purificação dos Espíritos que os habitam. A felicidade neles está na razão direta da predominância do bem sobre o mal e a predominância do bem resulta do adiantamento moral dos Espíritos. O progresso intelectual não basta, pois que com a inteligência podem eles fazer o mal.

Logo que um mundo tem chegado a um de seus períodos de transformação, a fim de ascender na hierarquia dos mundos, operam-­se mutações na sua população encarnada e desencarnada. É quando se dão as grandes emigrações e imigrações (n. os 34 e 35). Os que, apesar da sua inteligência e do seu saber, perseveraram no mal, sempre revoltados contra Deus e suas leis, se tornariam daí em diante um embaraço ao ulterior progresso moral, uma causa permanente de perturbação para a tranquilidade e a felicidade dos bons, pelo que são excluídos da humanidade a que até então pertenceram e tangidos para mundos menos adiantados, onde aplicarão a inteligência e a intuição dos conhecimentos que adquiriram ao progresso daqueles entre os quais passam a viver, ao mesmo tempo que expiarão, por uma série de existências penosas e por meio de árduo trabalho, suas passadas faltas e seu voluntário endurecimento.

Que serão tais seres, entre essas outras populações, para eles novas, ainda na infância da barbárie, senão anjos ou Espíritos decaídos, ali vindos em expiação? Não é, precisamente, para eles, um paraíso perdido a terra donde foram expulsos? Essa terra não lhes era um lugar de delícias, em comparação com o meio ingrato onde vão ficar relegados por milhares de séculos, até que hajam merecido libertar­-se dele? A vaga lembrança intuitiva que guardam da terra donde vieram é uma como longínqua miragem a lhes recordar o que perderam por culpa própria.

44. Mas, ao mesmo tempo que os maus se afastam do mundo em que habitavam, Espíritos melhores aí os substituem, vindos quer da erraticidade, concernente a esse mundo, quer de um mundo menos adiantado, que mereceram abandonar; Espíritos esses para os quais a nova habitação é uma recompensa. Assim renovada e depurada a população espiritual dos seus piores elementos, ao cabo de algum tempo o estado moral do mundo se encontra melhorado.

São às vezes parciais essas mutações, isto é, circunscritas a um povo, a uma raça; doutras vezes, são gerais, quando chega para o globo o período de renovação.

45. A raça adâmica apresenta todos os caracteres de uma raça proscrita. Os Espíritos que a integram foram exilados para a Terra, já povoada, mas de homens primitivos, imersos na ignorância, que aqueles tiveram por missão fazer progredir, levando-lhes as luzes de uma inteligência desenvolvida. Não é esse, com efeito, o papel que essa raça há desempenhado até hoje? Sua superioridade intelectual prova que o mundo donde vieram os Espíritos que a compõem era mais adiantado do que a Terra. Havendo entrado esse mundo numa nova fase de progresso e não tendo tais Espíritos querido, pela sua obstinação, colocar-­se à altura desse progresso, lá estariam deslocados e constituiriam um obstáculo à marcha providencial das coisas. Foram, em consequência, desterrados de lá e substituídos por outros que isso mereceram.

Relegando aquela raça para esta terra de labor e de sofrimentos, teve Deus razão para lhe dizer: “Dela tirarás o alimento com o suor da tua fronte”. Na sua mansuetude, prometeu-­lhe que lhe enviaria um salvador, isto é, um que a esclareceria sobre o caminho que lhe cumpria tomar, para sair desse lugar de miséria, desse inferno, e ganhar a felicidade dos eleitos. Esse salvador ele, com efeito, lho enviou, na pessoa do Cristo, que lhe ensinou a lei de amor e de caridade que ela desconhecia e que seria a verdadeira âncora de salvação.

É igualmente com o objetivo de fazer que a humanidade se adiante em determinado sentido que Espíritos superiores, embora sem as qualidades do Cristo, encarnam de tempos a tempos na Terra para desempenhar missões especiais, proveitosas, simultaneamente, ao adiantamento pessoal deles, se as cumprirem de acordo com os desígnios do Criador.

46. Sem a reencarnação, a missão do Cristo seria um contra­-senso, assim como a promessa feita por Deus. Suponhamos, com efeito, que a alma de cada homem seja criada por ocasião do nascimento do corpo e não faça mais do que aparecer e desaparecer da Terra: nenhuma relação haveria entre as que vieram desde Adão até Jesus Cristo, nem entre as que vieram depois; todas são estranhas umas às outras. A promessa que Deus fez de um salvador não poderia entender-­se com os descendentes de Adão, uma vez que suas almas ainda não estavam criadas. Para que a missão do Cristo pudesse corresponder às palavras de Deus, fora mister se aplicassem às mesmas almas. Se estas são novas, não podem estar maculadas pela falta do primeiro pai, que é apenas pai carnal e não pai espiritual. A não ser assim, Deus houvera criado almas com a mácula de uma falta que não podia deixar nelas vestígio, pois que elas não existiam. A doutrina vulgar do pecado original implica, conseguintemente, a necessidade de uma relação entre as almas do tempo do Cristo e as do tempo de Adão; implica, portanto, a reencarnação.

Dizei que todas essas almas faziam parte da colônia de Espíritos exilados na Terra ao tempo de Adão e que se achavam manchadas dos vícios que lhes acarretaram ser excluídas de um mundo melhor e tereis a única interpretação racional do pecado original, pecado peculiar a cada indivíduo e não resultado da responsabilidade da falta de outrem a quem ele jamais conheceu. Dizei que essas almas ou Espíritos renascem diversas vezes na Terra para a vida corpórea, a fim de progredirem, depurando-se; que o Cristo veio esclarecer essas mesmas almas, não só acerca de suas vidas passadas, como também com relação às suas vidas ulteriores e então, mas só então, lhe dareis à missão um sentido real e sério, que a razão pode aceitar.

47. Um exemplo familiar, mas frisante pela analogia, ainda mais compreensíveis tornará os princípios que acabam de ser expostos.

A 24 de maio de 1861, a fragata Ifigênia transportou à Nova Caledônia uma companhia disciplinar composta de 291 homens. À chegada, o comandante lhes baixou uma ordem do dia concebida assim:

“Pondo os pés nesta terra longínqua, já sem dúvida compreendestes o papel que vos está reservado.

“A exemplo dos bravos soldados da nossa marinha, que servem sob as vossas vistas, ajudar-­nos-eis a levar com brilho o facho da civilização ao seio das tribos selvagens da Nova Caledônia. Não é uma bela e nobre missão, pergunto? Desempenhá-­la­-eis dignamente.

“Escutai a palavra e os conselhos dos vossos chefes. Estou à frente deles. Entendei bem as minhas palavras.

“A escolha do vosso comandante, dos vossos oficiais, dos vossos suboficiais e cabos constitui garantia certa de que todos os esforços serão tentados para fazer-­vos excelentes soldados, digo mais: para vos elevar à altura de bons cidadãos e vos transformar em colonos honrados, se o quiserdes.

“A nossa disciplina é severa e assim tem que ser. Colocada em nossas mãos, ela será firme e inflexível, ficai sabendo, do mesmo modo que, justa e paternal, saberá distinguir o erro do vício e da degradação. . .”

Aí tendes um punhado de homens expulsos, pelo seu mau proceder, de um país civilizado e mandados, por punição, para o meio de um povo bárbaro. Que lhes diz o chefe? — “Infringistes as leis do vosso país; nele vos tornastes causa de perturbação e escândalo e fostes expulsos; mandam­-vos para aqui, mas aqui podeis resgatar o vosso passado; podeis, pelo trabalho, criar-vos aqui uma posição honrosa e tornar­-vos cidadãos honestos. Tendes uma bela missão a cumprir: levar a civilização a estas tribos selvagens. A disciplina será severa, mas justa, e saberemos distinguir os que procederem bem. Tendes nas mãos a vossa sorte; podeis melhorá-la, se o quiserdes, porque tendes o livre­-arbítrio.”

Para aqueles homens, lançados ao seio da selvajaria, a mãe­-pátria não é um paraíso que eles perderam pelas suas próprias faltas e por se rebelarem contra a lei? Naquela terra distante, não são eles anjos decaídos? A linguagem do chefe não é idêntica à de que usou Deus falando aos Espíritos exilados na Terra: “Desobedecestes às minhas leis e, por isso, eu vos expulsei do mundo onde podíeis viver ditosos e em paz. Aqui, estareis condenados ao trabalho; mas, podereis, pelo vosso bom procedimento, merecer perdão e reganhar a pátria que perdestes por vossa falta, isto é, o céu?”

48. À primeira vista, a ideia de decaimento parece em contradição com o princípio segundo o qual os Espíritos não podem retrogradar. Deve­-se, porém, considerar que não se trata de um retrocesso ao estado primitivo. O Espírito, ainda que numa posição inferior, nada perde do que adquiriu; seu desenvolvimento moral e intelectual é o mesmo, qualquer que seja o meio onde se ache colocado. Ele está na situação do homem do mundo condenado à prisão por seus delitos. Certamente, esse homem se encontra degradado, decaído, do ponto de vista social, mas não se torna nem mais estúpido, nem mais ignorante.

49. Será crível, perguntamos agora, que esses homens mandados para a Nova Caledônia vão transformar-­se de súbito em modelos de virtude? Que vão abjurar repentinamente seus erros do passado? Para supor tal coisa, fora necessário desconhecer a humanidade. Pela mesma razão, os Espíritos da raça adâmica, uma vez transplantados para a terra do exílio, não se despojaram instantaneamente do seu orgulho e de seus maus instintos; ainda por muito tempo conservaram as tendências que traziam, um resto da velha levedura. Ora, não é esse o pecado original?

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