Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1861

Allan Kardec

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A prece

Um dos nossos correspondentes de Lyon nos dirige o seguinte trecho de poesia. Ele entra muito no espírito da Doutrina Espírita para que nos furtemos ao prazer de lhe abrir espaço em nossa Revista.


Que eu não posso, mortais, com meus fracos acentos
Dar-vos ao coração o mais sublime incenso!
Ensinar-vos aqui, no colher desta messe
O que é a prece em si mesma e o que é fazer a prece.
É um impulso de amor, de fluídico ardor
Que se escapa da alma e se eleva ao Senhor.
Sublimada expansão da humilde criatura
Que retorna à sua fonte e eleva a sua natura!
Orar não muda em nada a lei do Pai Eterno
Sempre imutável, mas o coração paterno
Derrama o seu influxo no que o implora
E assim redobra o ardor do fogo que o devora.
É então que ele se sente crescer e elevar
E pelo amor do próximo o peito pulsar.
Mais se expande no amor, mais o sublime Ser
Enche-lhe o coração com os dons do saber.
Desde então, santo anseio de orar pelos mortos,
Sob o peso da dor e pungentes remorsos,
Nos mostra as exigências do seu novo estado,
De a eles dirigir seu fluido suavizado,
Cuja eficácia, bálsamo consolador,
Penetra-lhes no ser como um libertador.
Tudo neles se anima; um raio de esperança
Ajuda-lhes o esforço, à liberdade os lança.
Assim como aos mortais vencidos pelo mal
Que um bálsamo supremo devolve ao normal,
Eles se regeneram pelo impulso oculto
De augusta prece, ardente, e seu divino culto.
Redobremos o ardor; nada se perde enfim;
Preces, preces por eles, preces até o fim;
A prece, sempre a prece, essa estrela divina
Faz-se foco de amor e no final domina.
Oremos pelos mortos, sim, e logo por
Sua vez nos lançarão doce raio de amor.

JOLY


Nestes versos, evidentemente inspirados por um Espírito elevado, o objetivo e os efeitos da prece são definidos com perfeita exatidão. Certamente Deus não derroga suas leis a pedido nosso, pois seria a negação de um de seus atributos, que é a imutabilidade; mas a prece age, principalmente sobre aquele que é seu objeto; é, a princípio, um testemunho de simpatia e de comiseração que se lhe dá e que, por isso mesmo, lhe faz sentir sua pena menos pesada. Em segundo lugar, tem por efeito ativo excitar o Espírito ao arrependimento de suas faltas e inspirar-lhe o desejo de repará-las pela prática do bem. Deus disse: “A cada um segundo as suas obras”. Esta lei, eminentemente justa, põe a sorte em nossas próprias mãos e tem como consequência subordinar a duração da pena à duração da impenitência. Daí se segue que a pena seria eterna, se eterna fosse a impenitência. Assim, se, pela ação moral da prece, provocarmos o arrependimento e a reparação voluntária, por ela mesma abreviaremos o tempo de expiação. Tudo isto está perfeitamente claro nos versos acima. Esta doutrina pode não ser muito ortodoxa aos olhos dos que creem num Deus impiedoso, surdo à voz que implora, e que condena a torturas sem fim suas próprias criaturas por faltas numa vida passageira; mas convir-se-á que ela é a mais lógica e mais conforme à verdadeira justiça e à bondade de Deus. Tudo nos diz, a religião como a razão, que Deus é infinitamente bom. Com o dogma do fogo eterno, é preciso ajuntar que ele é, ao mesmo tempo, infinitamente impiedoso, dois atributos que se destroem reciprocamente, pois um é a negação do outro. Aliás, o número dos partidários da eternidade das penas diminui dia a dia, o que é um fato positivo e incontestável. Em breve estará tão restrito que poderão ser contados, e mesmo que desde hoje a Igreja taxasse de heresia e, consequentemente, rejeitasse de seu seio todos quantos não creem nas penas eternas, entre os católicos haveria mais heréticos do que verdadeiros crentes e seria necessário condenar, ao mesmo tempo, todos os eclesiásticos e teólogos que, como nós, interpretam essas palavras num sentido relativo e não absoluto.[1]



[1] As atuais modificações na Igreja e na Teologia confirmam o acerto desta previsão de Allan Kardec. (N. da Eq. Rev.).




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