Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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Lê-se no Siècle, de 5 de junho de 1864:

“Um berlinense, Sr. X..., possuía uma grande fortuna. Seu pai, ao contrário, em consequência de revezes, tinha caído numa pobreza absoluta e tinha sido forçado a recorrer à generosidade de seu filho. Este repeliu duramente a solicitação do velho que, para não morrer de fome, teve que recorrer à justiça. O Sr. X... foi condenado a fornecer ao pai uma pensão alimentícia. Mas o Sr. X... tinha tomado suas precauções. Pressentindo que se se recusasse a pagá-la, seria feita uma investigação em seus rendimentos, tomou a decisão de ceder sua fortuna a um tio paterno.

“Assim, o infeliz pai viu fugir-lhe a última esperança. Protestou que a cessão era fictícia e que seu filho tinha recorrido a ela para se furtar à execução da sentença. Mas ele teria que prová-lo; o velho, entretanto, não tinha condições para intentar um processo custoso, pois lhe faltavam as coisas mais necessárias à subsistência.

“Um acontecimento imprevisto veio tudo mudar. O tio morreu subitamente, sem testamento. Como ele não tinha família, a fortuna coube, de direito, ao parente mais próximo, isto é, ao seu irmão.

“Compreende-se o resto. Hoje, os papéis estão invertidos. O pai está rico e seu filho, pobre. O que, sobretudo, deve aumentar o desespero deste último é que ele não pode invocar o fato de uma cessão fictícia, pois a lei interdita formalmente esse gênero de transações.”

Dir-se-ia que se sempre fosse assim com o mal, melhor seria compreendida a justiça do castigo; sabendo o culpado por que é punido, saberia do que se deve corrigir.

Os exemplos de castigos imediatos são menos raros do que se pensa. Se se remontasse à fonte de todas as vicissitudes da vida, ver-se-ia aí, quase sempre, a consciência natural de alguma falta cometida. A cada instante recebe o homem terríveis lições, das quais, infelizmente, tira pouco proveito. Enceguecido pela paixão, ele não vê a mão de Deus que o fere. Longe de reconhecer-se culpado por seus próprios infortúnios, ele os atribui à fatalidade, à sua má sorte; irrita-se muito mais frequentemente do que se arrepende, e não nos surpreenderíamos se o filho do qual se fala acima, em vez de ter reconhecido seus erros para com o pai; em vez de voltar a ter melhores sentimentos para com ele, não tivesse concebido contra ele mais animosidade. Ora, o que é que Deus pede ao culpado? O arrependimento e a reparação voluntária.

Para motivá-lo a isso, ele multiplica em seu redor os avisos sob todas as formas, durante sua vida: desgraças, decepções, perigos iminentes, numa palavra, tudo o que é próprio a fazê-lo refletir. Se, a despeito disto, seu orgulho resiste, não é justo seja punido mais tarde? Grave erro é pensar que o mal fique algumas vezes completamente impune na vida atual. Se soubéssemos tudo quanto acontece ao mau, aparentemente o mais próspero, ficaríamos convencidos da verdade de que não há uma única falta nesta vida, uma só inclinação má, digamos mais, um só mau pensamento que não tenha sua contrapartida. Deduz-se daí que, consequentemente, se o homem aproveitasse os avisos que recebe; se ele se arrependesse e reparasse suas faltas ainda nesta vida, teria satisfeito à justiça de Deus e não teria mais que expiar e reparar, quer no mundo dos Espíritos, quer em nova existência. Se há, portanto, aqueles que nesta vida sofrem as consequências de sua existência anterior, é que eles têm a pagar uma dívida que não saldaram. Se o filho em questão morrer na impenitência, sofrerá, a princípio, no mundo dos Espíritos, o castigo do remorso; sofrerá moralmente o que fez sofrer materialmente; será um Espírito infeliz, porque terá violado a lei que lhe dizia: Honra teu pai e tua mãe. Mas Deus, que é soberanamente bom e, ao mesmo tempo, soberanamente justo, permitir-lhe-á reencarnar-se para reparar; talvez lhe dê o mesmo pai, e, em sua bondade, lhe poupe a humilhante lembrança do passado. Entretanto, o culpado trará consigo a intuição das resoluções que tiver tomado e a vontade de fazer o bem, em vez do mal. Será a voz da consciência que lhe ditará a conduta. Depois, quando voltar ao mundo dos Espíritos, Deus lhe dirá: Vem a mim, meu filho, tuas faltas estão apagadas. Mas, se ele falhar nessa nova prova, terá que recomeçar, até que se tenha despojado inteiramente do homem velho.

Cessemos, portanto, de ver nas misérias que sofremos por faltas de uma existência anterior um mistério inexplicável, e digamos que de nós depende evitálas, merecendo o perdão desde esta vida. Saldadas nossas dívidas, Deus não nos fará pagá-las segunda vez. Mas, se ficarmos surdos a seus avisos, então ele exigirá até o último ceitil, ainda que após séculos ou milhares de anos. Para isto ele não exige vãos simulacros, mas a reforma radical do coração. A morada dos eleitos só é aberta aos Espíritos purificados. Qualquer mancha interdita o seu acesso. Todos podem pretendê-lo, mas a cada um cabe fazer o que é necessário para lá chegar, mais cedo ou mais tarde, conforme seus esforços e sua vontade. No entanto, Deus a ninguém diz: Não te purificarás!

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