Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1860

Allan Kardec

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Palestras familiares de além-túmulo

Jardin

Lê-se no Journal de la Nièvre: Um acidente funesto ocorreu sábado último na estação da estrada de ferro. Um homem de sessenta e dois anos, um tal Jardin, ao sair do pátio da estação, foi colhido pelos varais de um tílburi, e poucas horas depois exalava o último suspiro.

A morte desse homem revelou uma das mais extraordinárias histórias, à qual não daríamos crédito, se testemunhas verídicas não nos tivessem garantido a sua autenticidade. Ei-la, tal qual nos foi contada.

Antes de ser empregado no entreposto de tabacos de Nevers, Jardin morava no Cher, vila de Saint-Germain-des-Bois, onde era alfaiate. Sua mulher tinha morrido havia cinco anos, nessa aldeia, vítima de uma fluxão de peito, quando, há oito anos, ele deixou Saint-Germain para vir morar em Nevers. Empregado laborioso, Jardin era muito piedoso, de uma devoção exaltada e se entregava com fervor às práticas religiosas; tinha um genuflexório em seu quarto, no qual gostava de se ajoelhar. Sexta-feira à noite, encontrando-se só com a filha, anunciou-lhe, de repente, que um secreto pressentimento o advertia que seu fim estava próximo.

─ Escuta, disse-lhe ele, minhas últimas vontades: Quando eu estiver morto, remeterás ao Sr. B... a chave do meu genuflexório para que ele leve o que ali encontrar e deposite em meu caixão.

Admirada com essa brusca recomendação, a senhorita Jardin, não sabendo bem se o pai falava sério, perguntou-lhe o que se acharia no genuflexório. A princípio, ele recusou-se a responder, mas como ela insistisse, ele lhe fez a estranha revelação de que o que se achava ali eram os restos de sua mãe! Informou que antes de deixar Saint-Germain-des-Bois, à noite, tinha ido ao cemitério. Todos dormiam na aldeia; sentindo-se muito só, tinha ido à sepultura da esposa e com uma pá tinha cavado até encontrar os restos da que fora sua companheira. Não querendo separar-se desses preciosos despojos, tinha recolhido os ossos, guardando-os no seu genuflexório.

A essa estranha confidência, a filha, um pouco amedrontada, mas sempre duvidando de que o pai falasse sério, lhe prometeu agir de acordo com suas últimas vontades, persuadida de que ele queria divertir-se à sua custa, e que no dia seguinte lhe daria a solução desse fantástico enigma.

No dia seguinte, sábado, Jardin foi ao escritório, como de costume. Cerca de uma hora foi mandado à estação de mercadorias para despachar sacos de tabaco, destinados ao abastecimento do entreposto. Apenas saía da estação, os varais de um tílburi que ele não tinha visto no meio das viaturas que estacionavam no embarcadouro, o atingiram em pleno peito. Os pressentimentos não o haviam enganado. Derrubado pela violência do choque, foi levado para casa sem sentidos.

Os socorros prestados fizeram-no recuperar os sentidos. Quiseram tirar-lhe as roupas, para examinar os ferimentos; ele se opôs vivamente; insistiram e recusou ainda. Mas como, a despeito da resistência, se dispunham a despi-lo, abateu-se de repente: estava morto.

O corpo foi posto numa cama. Mas qual não foi a surpresa dos presentes quando, depois de despido, viu-se sobre o coração um saco de couro, preso por tiras amarradas em volta de seu corpo! Um corte feito pelo médico chamado para constatar a morte separou o saco em duas partes, de onde caiu uma mão seca!

Lembrando-se do que o pai lhe havia dito na véspera, a senhorita Jardin preveniu os senhores B... e J..., marceneiros. O genuflexório foi aberto; dele foi retirado um schako da guarda nacional. No fundo do schako (boné militar, de copa alta e redonda) estava uma cabeça de morto, ainda com os cabelos; depois perceberam, no fundo do genuflexório, os ossos de um esqueleto: eram os restos da senhora Jardin.

Domingo último levaram à sepultura os despojos de Jardin. Para satisfazer à vontade do sexagenário, tinham posto no caixão os restos de sua mulher e, sobre o seu peito, a mão seca que, se assim podemos dizer, durante oito anos havia sentido bater o seu coração.

1. Evocação: ─ Aqui estou.

2. ─ Quem vos preveniu de que desejávamos falar-vos? ─ Eu não sei de nada; fui atraído para aqui.

3. ─ Onde estáveis quando vos chamamos? ─ Junto a um homem de quem gosto, acompanhado de minha mulher.

4. ─ Como tivestes o pressentimento da morte? ─ Tinha sido prevenido por aquela que tanto lamentava. Deus o havia concedido, por sua prece.

5. ─ Vossa mulher estava, então, sempre ao vosso lado? ─ Ela não me deixava.

6. ─ Os seus restos mortais, que conserváveis, eram a causa de sua presença? ─ De maneira nenhuma, mas eu o acreditava.

7. ─ Assim, se não tivésseis conservado esses restos, nem por isto o Espírito de vossa mulher deixaria de estar ao vosso lado? ─ Então o pensamento não é mais poderoso para atrair o Espírito, do que os restos sem importância para ele?

8. ─ Revistes imediatamente vossa esposa, no momento da morte? ─ Foi ela que veio receber-me e esclarecer-me.

9. ─ Tivestes imediatamente a consciência de vós mesmo? ─ Ao cabo de pouco tempo. Eu tinha uma fé intuitiva na imortalidade daalma.

10. ─ Vossa mulher deve ter tido existências anteriores à última. Como foi que as esqueceu, para consagrar-se inteiramente a vós? ─ Ela devia guiar-me na minha vida material, sem por isso renunciar às antigas afeições. Quando dizemos que jamais abandonamos um Espírito encarnado, deveis compreender que queremos dizer que estaremos mais tempo junto a ele do que alhures. A velocidade do nosso deslocamento nos permite isso, tão facilmente quanto, a vós, uma conversa com vários interlocutores.

11. ─ Tendes lembrança de vossas existências precedentes? ─ Sim. Na última fui um pobre camponês sem instrução; mas anteriormente havia sido religioso, sincero e devotado ao estudo.

12. ─ A extraordinária afeição à vossa esposa não teria, como causa, antigas relações de outras existências? ─ Não.

13. ─ Sois feliz como Espírito? ─ Não se pode mais, deveis compreender.

14. ─ Podeis definir vossa felicidade atual e nos dizer a sua causa? ─ Eu não deveria ter necessidade de vo-lo dizer: eu amava e sentia falta de um Espírito querido; amava a Deus; era honesto; encontrei o que me faltava. Eis os elementos de felicidade para um Espírito.

15. ─ Quais são as vossas ocupações como Espírito? ─ Disse-vos que ao ser chamado estava junto a um homem de quem gostava. Procurava inspirar-lhe o desejo do bem, como sempre fazem os Espíritos que Deus julga dignos. Temos ainda outras ocupações que ainda não podemos revelar.

16. ─ Agradecemos a bondade de terdes vindo. ─ Eu também vos agradeço.


Uma convulsionária

Tendo as circunstâncias permitido contato com a filha de uma das principais convulsionárias de Saint-Médard, foi possível recolher sobre essa espécie de seita algumas informações particulares. Assim, nada há de exagerado no que se relata sobre as torturas a que voluntariamente se submetiam os fanáticos. Sabe-se que uma das provas, denominadas grandes socorros, consistia em sofrer a crucificação e todos os sofrimentos da Paixão do Cristo. A pessoa de quem falamos, e que só faleceu em 1830, ainda tinha nas mãos os furos feitos pelos pregos que haviam servido para suspendê-la à cruz, e no lado as marcas dos golpes de lança que havia recebido. Ela escondia cuidadosamente esses estigmas do fanatismo, e sempre tinha evitado explicá-los aos filhos. É conhecida na história das convulsionárias sob um pseudônimo que calaremos, pelos motivos que revelaremos oportunamente. A conversa que segue ocorreu em presença de sua filha, que a desejou. Dela suprimiremos particularidades íntimas, que não interessariam aos estranhos e que foram, sobretudo para a filha, uma incontestável prova de identidade.

1. Evocação. ─ Há muito tempo desejo conversar convosco.

2. ─ Qual o motivo que vos levava a desejar conversar comigo? ─ Sei apreciar vossos trabalhos, a despeito do que possais pensar de minhas crenças.

3. ─ Vedes aqui a senhora sua filha? Foi sobretudo ela que quis conversar convosco, e ficaremos encantados de aproveitar o ensejo para nossa instrução. ─ Sim, uma mãe sempre vê seus filhos.

4. ─ Sois feliz como Espírito? ─ Sim e não, porque poderia ter feito melhor. Mas Deus leva em conta a minha ignorância.

5. ─ Lembrai-vos perfeitamente da última existência? ─ Eu teria muita coisa a vos dizer, mas orai por mim, a fim de que isto me seja permitido.

6. ─ As torturas a que vos submetestes vos elevaram e tornaram mais feliz como Espírito? ─ Não me fizeram mal, mas não me ajudaram a avançar como inteligência.

7. ─ Peço-vos a fineza de ser precisa. Pergunto se aquilo vos foi levado à conta de mérito? ─ Direi que tendes um item no Livro dos Espíritos que dá a resposta geral. Quanto a mim, eu era uma pobre fanática.

NOTA: Alusão ao item 726 do Livro dos Espíritos, sobre os sofrimentos voluntários.

8. ─ Esse item diz que o mérito dos sofrimentos voluntários está na razão da utilidade resultante para o próximo. Ora, os das convulsionárias não tinham, segundo creio, senão um fim puramente pessoal. ─ Era geralmente pessoal, e se jamais falei disso a meus filhos, foi porque compreendia vagamente que não era aquele o verdadeiro caminho.

OBSERVAÇÃO: Aqui o Espírito da mãe responde por antecipação ao pensamento da filha, que desejava perguntar por que, em vida, tinha evitado falar disso aos filhos.

9. ─ Qual a causa do estado de crise das convulsionárias? ─ Disposição natural e superexcitação fanática. Jamais teria querido que meus filhos fossem arrastados para essa rampa fatal, que hoje ainda melhor reconheço como tal. Respondendo espontaneamente a uma reflexão de sua filha que, entretanto, não havia formulado a pergunta, acrescenta: ─ Eu não tinha educação, mas intuição de muitas existências anteriores.

10. ─ Dentre os fenômenos produzidos entre as convulsionárias, alguns têm analogia com certos efeitos sonambúlicos, como, por exemplo, a penetração do pensamento, a visão à distância, a intuição das línguas? O magnetismo representava nisso um algum papel? ─ Muito, e vários sacerdotes magnetizavam, sem o consentimento das pessoas.

11. ─ De onde provinham as cicatrizes que tínheis nas mãos e noutras partes do corpo? ─ Pobres troféus de nossas vitórias, que a ninguém serviram, e que por vezes excitaram paixões. Deveis compreender-me.

OBSERVAÇÃO: Parece que nas práticas das convulsionárias passavam-se coisas de grande imoralidade que haviam revoltado o coração honesto dessa senhora, e mais tarde, quando acalmada a febre fanática, fizeram-na tomar aversão por tudo quanto lhe trouxesse recordações do passado. É sem dúvida uma das razões que a levavam a não falar do assunto a seus filhos.

12. ─ Realmente eram operadas curas sobre o túmulo do diácono Pâris? ─ Oh! Que pergunta! Bem sabeis que não, ou pouca coisa, sobretudo para vós.

13. ─ Depois de vossa morte, vistes Pâris? ─ Desde que ingressei no mundo dos Espíritos, não me ocupei dele, porque o culpo por meu erro.

14. ─ Como o consideráveis quando viva? ─ Como um enviado de Deus, e é por isto que lhe censuro o mal que fez em nome de Deus.

15. ─ Mas não é ele inocente pelas tolices praticadas em seu nome após a sua morte? ─ Não, porque ele próprio não acreditava no que ensinava. Não o compreendi, quando viva, como o compreendo agora.

16. ─ É certo que o Espírito dele tenha ficado indiferente, como ele disse, às manifestações ocorridas em sua sepultura? ─ Ele vos enganou.

17. ─ Assim, ele excitava o zelo fanático? ─ Sim, e ainda o faz.

18. ─ Quais as vossas ocupações como Espírito? ─ Procuro instruir-me, e é por isso que disse que desejava vir entre vós.

19. ─ Em que lugar estais, aqui? ─ Perto do médium, com a mão sobre o seu braço ou sobre o seu ombro.

20. ─ Se pudéssemos ver-vos, sob que forma seríeis vista? ─ Minha filha veria sua mãe, como era quando viva. Quanto a vós, me veríeis em Espírito; a palavra não vo-la posso dizer.

21. ─ Tende a bondade de vos explicar. O que quereis dar a entender quando dizeis que eu vos veria em Espírito? ─ Uma forma humana transparente, conforme a depuração do Espírito.

22. ─ Dissestes haver tido outras existências. Tendes lembrança delas? ─ Sim, eu vo-lo disse, e por minhas respostas, deveis ver que tive muitas.

23. ─ Poderíeis dizer qual a que precedeu a última, que conhecemos? ─ Não esta noite e não por este médium. Pelo senhor, se quiserdes.

NOTA: Ela designa um dos assistentes, que começava a escrever como médium e explica sua simpatia por ele, porque, diz ela, o conheceu em sua precedente existência.

24. ─ Ficaríeis contrariada se eu publicasse esta conversa na Revista? ─ Não. É necessário que o mal seja divulgado; mas não me chameis... (seu nome de guerra). Detesto esse nome. Designai-me, se quiserdes, como grande mestra.

OBSERVAÇÃO: É para condescender com o seu desejo que não citamos o nome sob o qual era conhecida, e que lhe traz penosas recordações.

25. ─ Nós vos agradecemos por terdes vindo e pelas explicações que nos destes. ─ Sou eu que vos agradeço por terdes proporcionado a minha filha a ocasião de encontrar sua mãe, e a mim, a de poder fazer um pouco de bem.

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