Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862

Allan Kardec

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Dissertações e ensinos espíritas

O duelo (Bordeaux, 21 de novembro de 1861 - Médium: Sr. Guipon)

— CONSIDERAÇÕES GERAIS

O homem, ou Espírito encarnado, pode estar em vossa Terra em missão, em progressão, em punição.

Isto posto, é necessário saibais, de uma vez por todas, que o estado de missão, progressão ou punição deve, sob pena de recomeçar a prova, chegar ao termo fixado pelos desígnios da suprema justiça.

Adiantar por si mesmo, ou por provocação, o instante fixado por Deus para a entrada no mundo dos Espíritos é, pois, enorme crime.

O duelo é ainda um crime maior, porque não só é um suicídio, mas, além disso, um assassinato premeditado.

Na verdade, pensais que o provocado e o provocador não se suicidem moralmente ao se exporem voluntariamente aos golpes mortais do adversário? Credes que não sejam ambos assassinos, no momento em que procuram mutuamente tirar a vida por eles escolhida ou imposta por Deus como expiação ou como prova?

Sim, eu te digo, meu amigo, duas vezes criminosos aos olhos de Deus são os duelistas; duas vezes terrível será a punição, porque nenhuma escusa será admitida, porque por eles tudo foi calculado friamente e premeditado.

Leio em teu coração, meu filho, porque também foste um pobre transviado, e eis minha resposta.

Para não sucumbir a essa terrível tentação só necessitais de humildade, sinceridade e caridade para com vosso irmão em Deus. Por outro lado, só sucumbis pelo orgulho e pela ostentação.



2º. ─ CONSEQUÊNCIAS ESPIRITUAIS

Aquele que, por humildade, como o Cristo, tiver suportado o maior ultraje e perdoado de coração, por amor a Deus, além das recompensas celestes da outra vida, terá a paz de coração nesta e uma alegria incompreensível por haver duas vezes respeitado a obra de Deus.

Aquele que, por caridade para com o próximo, lhe houver provado seu amor fraterno, na outra vida terá a santa proteção e o concurso poderoso da gloriosa mãe do Cristo, pois ela ama e abençoa os que cumprem os mandamentos de Deus; os que seguem e praticam os ensinos de seu Filho.

Aquele que, a despeito dos ultrajes, tiver respeitado a existência de seu irmão e a sua própria, ao entrar no mundo etéreo, encontrará milhões de legiões de bons e puros Espíritos que virão, não honrá-lo por sua ação, mas provar-lhe, por seu devotamento em facilitar-lhe os primeiros passos na nova existência, a simpatia que soube atrair, e os verdadeiros amigos que fez entre eles, seus irmãos.

Todos juntos elevarão a Deus sinceras ações de graça por sua misericórdia, que permitiu ao seu irmão resistir à tentação.

Aquele, digo eu, que houver resistido a essas tristes tentações, pode esperar, não a mudança dos desígnios de Deus, que são imutáveis, mas contar com a benevolência sincera e afetuosa do Espírito de Verdade, o Filho de Deus, o qual de maneira incomparável inundará sua alma com a felicidade de compreender o Espírito de justiça perfeita e de bondade infinita e, consequentemente, salvaguardálo de qualquer outra cilada semelhante.

Ao contrário, aqueles que, provocados ou provocadores, tiverem sucumbido, podem estar certos de que experimentarão as maiores torturas morais, pela contínua presença do cadáver de sua vítima e do seu próprio. Durante séculos serão roídos pelo remorso, por haverem desobedecido tão gravemente às leis celestes, e serão perseguidos, até o dia da expiação, pelo espectro horrível da dupla visão de seus cadáveres ensanguentados.

Felizes ainda se eles próprios aliviarem os sofrimentos por um arrependimento sincero e profundo que lhes abra os olhos da alma, porque então, ao menos poderão entrever um fim às suas penas, compreenderão Deus e lhe pedirão forças para não mais provocarem sua justiça terrível.


3º. ─ CONSEQUÊNCIAS HUMANAS

Os vocábulos dever, honra e coragem, por vezes são pelos homens considerados como questões de honra, para justificarem suas ações e seus crimes.

Eles sempre compreendem tais vocábulos? Não são eles o resumo das intenções do Cristo? Por que, então, lhes truncar o sentido? Por que, então, regredir à barbárie?

Infelizmente, na sua generalidade, os homens ainda se acham sob a influência do orgulho e da ostentação. Para se escusarem aos próprios olhos, fazem soar bem alto os vocábulos dever, honra e coragem e não se dão conta de que eles significam: execução dos mandamentos de Deus, sabedoria, caridade e amor. Com essas palavras, entretanto, estrangulam seus irmãos; com elas se suicidam; com elas se perdem.

Como estão cegos! Julgam-se fortes por terem arrastado um infeliz mais fraco do que eles. Estão cegos quando creem que a aprovação de sua conduta por outros cegos como eles próprios lhes acarretará a consideração humana! A própria Sociedade onde vivem os reprova e em breve os amaldiçoará, pois o reino da fraternidade se aproxima. Enquanto isso, deles fogem os homens sensatos, como fogem das feras.

Examinemos alguns casos e veremos se o raciocínio justifica sua interpretação das palavras dever, honra e coragem.

Um homem tem o coração varado de dor e a alma cheia de amargura, porque surpreendeu provas irrecusáveis da má conduta da esposa. Provoca um dos sedutores dessa pobre e infeliz criatura. Tal provocação seria resultado de seus deveres, de sua honra, de sua coragem? Não, porque sua honra não lhe será devolvida. Sua honra pessoal não foi nem pode ter sido atingida. Isto será vingança.

Melhor ainda. Para provar que sua pretensa honra não está em jogo, é que muitas vezes sua infelicidade é mesmo ignorada e ficaria ignorada se não fosse tornada pública por mil vozes provocadas pelo escândalo ocasionado por sua vingança.

Enfim, se sua infelicidade fosse conhecida, ele seria sinceramente lamentado por todos os homens sensatos, resultando numerosas provas de verdadeira simpatia, e ele teria contra si apenas o riso dos corações malévolos e endurecidos, mas desprezíveis.

Num caso como no outro, sua honra não seria devolvida nem retirada.

Só o orgulho é, pois, o guia de quase todos os duelistas, e não a honra.

Credes que por uma palavra; pela falsa interpretação de uma frase; pelo roçar insensível e involuntário de um braço ao passar; enfim, por um sim ou por um não, e até mesmo, eventualmente, por um olhar que lhe não era dirigido, seja o duelista levado por um sentimento de honra a exigir uma pretensa reparação pelo assassinato e pelo suicídio? Oh! Não duvideis. O orgulho e a certeza de sua força são seus únicos móveis, por vezes auxiliados pela ostentação, pois ele quer exibir-se, dar prova de coragem, de saber e às vezes de generosidade.

Ostentação!!!

Ostentação, repito, porque seus conhecimentos em questões de duelo são os únicos verdadeiros; sua coragem e sua generosidade são mentiras.

Quereis pô-lo em prova real, a esse espadachim corajoso? Ponde-o diante de um rival de reputação infernal, superior à sua, no entanto possivelmente de um saber inferior ao seu, e ele empalidecerá e tudo fará para evitar o combate. Ponde-o diante de um muito mais fraco e ignorante dessa ciência duplamente mortal, e vê-lo-eis impiedoso, altivo e arrogante, mesmo quando constrangido a ter piedade.

─ Isso é coragem?

A generosidade! Oh! Falemos dela. Será generoso o homem

que, confiante em sua força, depois de haver provocado a fraqueza, a esta concede a continuação de uma vida humilhada e levada ao ridículo?

Será generoso aquele que, para alcançar uma coisa desejada e ambicionada, provoca seu fraco possuidor para obtê-la, a seguir, como recompensa de sua generosidade?

Será generoso aquele que, usando seus talentos criminosos, poupa a vida de seres fracos que injuriou?

Será, ainda, generoso quando dá semelhante prova de generosidade ao marido ou irmão a quem indignamente ultrajou, e que ele expõe, agora pelo desespero, a um segundo suicídio?

Oh! Meus amigos! Crede todos que o duelo é uma terrível e horrorosa invenção dos Espíritos maus e perversos, invenção digna do estado de barbárie que aflige ao máximo o nosso pai, o Deus tão bom.

Cabe a vós, espíritas, combater e destruir tão triste hábito, esse crime digno dos anjos das trevas.

Cabe a vós, espíritas, dar o nobre exemplo da renúncia, a despeito de tudo, a esse funesto mal.

Cabe a vós, espíritas sinceros, fazer compreendida a sublimidade das palavras dever, honra e coragem, e Deus falará por vossas vozes.

Cabe a vós, enfim, a felicidade de semear entre vossos irmãos os germens tão preciosos e por nós ignorados em nossa existência terrena, os do Espiritismo.



Teu pai, ANTÔNIO

OBSERVAÇÃO: Os duelos tomam-se cada vez mais raros ao menos na França e se vemos ainda, de vez em quando, dolorosos exemplos, seu número já não é comparável aos de outrora. Antigamente um homem não saía de casa sem prever um encontro, em conseqüência do que tomava precauções. Um sinal característico dos costumes da época e da gente estava no porte habitual, ostensivo ou oculto, de armas ofensivas e defensivas. A abolição desse uso testemunha o abrandamento dos costumes; e écurioso seguir-lhe a gradação desde aquela época em que os cavaleiros jamais cavalgaram sem armadura e armados de lança, até o simples porte da espada, mais como ornamento e acessório do brasão, do que arma agressiva. Outro traço dos costumes é que outrora os combates singulares se davam em plena rua, perante a multidão que se afastava para deixar o campo livre, e que hoje são ocultos. Hoje a morte de um homem é um acontecimento comovente. Outrora não se prestava atenção. O Espiritismo apagará esses últimos vestígios da barbárie, inculcando nos homens o espírito de caridade e de fraternidade.



Fundamentos da ordem social (Lyon, 16 de setembro de 1862 - Médium: Sr. Émile V...)

NOTA: Esta comunicação foi obtida numa sessão particular, presidida pelo Sr. Allan Kardec.

Ei-vos reunidos para ver o Espiritismo em sua fonte, a fim de olhar de frente essa ideia e de apreciar as grandes ondas de amor que ela prodigaliza aos que a conhecem.

O Espiritismo é o progresso moral; é a elevação do Espírito na via conducente a Deus. O progresso é a fraternidade em seu nascedouro, porque a fraternidade completa, tal qual pode o Espírito imaginá-la, é a perfeição.

A fraternidade pura é um perfume do alto, uma emanação do infinito, um átomo da inteligência celeste; é a base de todas as instituições morais e o único meio de elevar a uma condição social que possa subsistir e produzir os efeitos dignos da grande causa pela qual combateis.

Sede irmãos, portanto, se quiserdes que o germe lançado entre vós se desenvolva e se torne a árvore que buscais. A união é a força soberana que baixa à Terra, e a fraternidade é a simpatia da união, é a poesia, o encanto, o ideal no positivo.

Precisais ser unidos para serdes fortes e ser fortes para fundardes uma instituição que não repouse senão sobre a verdade, tornada tão tocante e tão admirável, tão simples e tão sublime. As forças divididas aniquilam-se. Reunidas, são cada vez mais fortes.

E se se considerar o progresso de cada criatura, se se refletir no amor e na caridade que brota de cada coração, a diferença será muito maior. Sob o sublime influxo desse sopro inefável, os laços de família se apertam, mas os laços sociais, tão vagamente definidos, se esboçam, se aproximam e acabam formando um único feixe de todos esses pensamentos, de todos esses desejos, de todos esses objetivos de natureza diversa.

O que é que vedes sem a fraternidade? O egoísmo e a ambição. Cada um tem o seu objetivo; cada um o persegue por seu lado; cada um marcha a seu modo, e todos são fatalmente arrastados para o abismo onde mergulham, há séculos, todos os esforços humanos. Com a união há um só objetivo, pois há um só pensamento, um só desejo, um só coração.

Uni-vos, pois, meus amigos, é o que incessantemente vos repete a voz de nosso mundo. Uni-vos e chegareis mais depressa ao vosso objetivo.

É sobretudo nessa reunião inteiramente simpática que deveis tomar a resolução irrevogável de serdes unidos por um pensamento comum a todos os espíritas da Terra, para oferecerdes a homenagem do vosso reconhecimento àquele que vos abriu o caminho do bem supremo; àquele que trouxe a felicidade às vossas cabeças, a alegria aos vossos corações e a fé aos vossos Espíritos.

Vosso reconhecimento é sua recompensa atual. Não lho recuseis, portanto, e fazendo a oferta a uma só voz, dareis o primeiro exemplo de verdadeira fraternidade.

LÉON DE MURIANE, Espírito Protetor

OBSERVAÇÃO: Esse nome é completamente desconhecido, até do médium. Isso prova que para ser um Espírito elevado é desnecessário ter o nome inscrito no calendário ou nos fastos da história e que, entre os que se comunicam, muitos há que têm nomes desconhecidos.

Aqui jazem 18 séculos de luzes (Lyon, 16 de setembro de 1862 - Médium: Sr. Émile V...)

O Sr. Émile, que obteve a comunicação acima e muitas outras igualmente notáveis, é muito jovem. Ele não é apenas um excelente médium escrevente. É médium pintor, posto não tenha aprendido desenho nem pintura. Ele pinta a óleo paisagens e diversos temas, e por isso é levado a escolher, misturar e combinar as cores necessárias.

Do ponto de vista da Arte, seus quadros certamente não são perfeitos, posto em certas exposições sejam vistos muitos que não valem mais. Falta-lhes acabamento e delicadeza, e os tons são duros e muito acentuados. Mas, quando se pensa nas condições em que são feitos, não são menos notáveis. Quem sabe se, com exercícios, não adquirirá ele a habilidade que lhe falta e não se tornará um verdadeiro pintor, como aquele operário de Bordeaux que sabendo apenas assinar o nome, escreve como médium e acabou tendo uma linda letra para uso pessoal, sem outro mestre além dos Espíritos?

Quando vimos o Sr. Émile, ele estava concluindo um quadro alegórico, onde se vê um féretro, sobre o qual estava escrito: Aqui jaz 18 séculos de luzes. Permitimonos criticar tal inscrição do ponto de vista gramatical, e, em primeiro lugar, não compreendemos o sentido dessa alegoria colocando dezoito séculos de luzes num caixão, visto que, dizíamos nós, graças sobretudo ao Cristianismo, a Humanidade está hoje mais esclarecida do que naquela época. Isto aconteceu na sessão do dia 16, na qual ele recebeu a comunicação acima. O Espírito respondeu às nossas observações, acrescentando o seguinte:

“Aqui jaz é posto intencionalmente. O sujeito não é expresso pelo número 18, representando séculos: é um total de séculos, uma ideia coletiva, como se houvesse um lapso de tempo de 18 séculos.

Podereis dizer aos vossos gramáticos que não confundam uma ideia coletiva com uma ideia de separação. Eles próprios não dizem da multidão, que pode ser composta de incalculável número de pessoas, que ELA PODE mover-se? É o bastante sobre o assunto. Assim deve ser, porque essa é a ideia.

“Agora, falemos da alegoria. Dezoito séculos de luzes num caixão! Essa ideia representa todos os esforços feitos pela verdade durante esse tempo, esforços que foram sempre destruídos pelo espírito de partido, pelo egoísmo. Dezoito séculos de luzes em pleno dia, seriam dezoito séculos de felicidade para a Humanidade, dezoito séculos que apenas começam a germinar na Terra e que teriam tido seu desenvolvimento. O Cristo trouxe a verdade à Terra e a colocou ao alcance de todos. O que aconteceu com ela? As paixões terrestres dela se apoderaram e ela foi metida num caixão, de onde acaba de tirá-la o Espiritismo. Eis a alegoria.”

LÉON DE MURIANE

Papel da sociedade de Paris (Sociedade de Paris, 24 de outubro de 1862 - Médium: Sr. Leymarie)

Paris é o ponto de desembarque do mundo. Cada um aí vem buscar uma impressão ou uma ideia.

Quando me achava em vosso meio, por vezes me perguntava por que essa grande cidade, ponto de encontro do mundo inteiro, não possuía uma reunião espírita numerosa, mas tão numerosa quanto os mais vastos anfiteatros pudessem conter.

Por vezes cheguei a pensar que os espíritas parisienses entregavam-se demais aos prazeres. Até pensei que a fé espírita para muitos era um prazer de amador, uma distração entre as muitas que Paris oferece continuamente.

Mas, longe de vós e contudo tão perto, vejo e compreendo melhor. Paris está assentada à margem de Sena, mas Paris está em toda a parte, e todos os dias essa cabeça poderosa revolve o mundo inteiro.

Como ela, a Sociedade central faz jorrar seu pensamento no Universo. Sua força não está no círculo onde se realizam suas sessões, mas em todos os países onde são seguidas as suas dissertações, em toda a parte onde ela faz lei, à vista de seus ensinos inteligentes. É um sol cujos raios benfazejos repercutem ao infinito.

Por isso mesmo, a Sociedade não pode ser um grupo comum. Seus pontos de vista são predestinados, e seu apostolado é maior. Não pode ela restringir-se a um pequeno espaço. O mundo lhe é necessário, por ser ela de natureza invasora. De fato, ela conquista, pacificamente, hoje cidades, amanhã reinos, mais tarde o mundo inteiro.

Quando um estrangeiro vos faz uma visita de cortesia, recebei-o dignamente e afetuosamente, para que leve uma grande ideia do Espiritismo, essa poderosa arma da civilização, que deve aplainar todos os caminhos, vencer todas as resistências e até todas as dúvidas. Dai largamente, para que cada um receba esse alimento do Espírito que tudo transforma em sua passagem misteriosa, porque a crença nova é forte como Deus, grande como ele, caridosa como tudo quanto emana do poder superior, que fere para consolar, dando à Humanidade em trabalho a prece e a dor por antecipação.

Bendita sejas, Sociedade que amo, tu que dás sempre com benevolência, tu que realizas uma tarefa árdua sem olhar as pedras que barram a passagem. Muito mereceste de Deus. Não serás e não poderás ser um centro ordinário, mas, ao contrário ─ repito-o ─ a fonte benfazeja onde o sofrimento virá sempre encontrar o bálsamo reparador.

SANSON

(Antigo Membro da Sociedade de Paris)

Origem da linguagem (Sociedade espírita de Paris - Médium: Sr. D'Ambel)

Meus caros e bem-amados amigos ouvintes, pedis-me hoje que eu dite ao meu médium a história da linguagem. Tentarei satisfazer-vos. Deveis, porém, compreender que me será impossível, nalgumas linhas, tratar inteiramente da importante questão, à qual se liga forçosamente outra mais importante, a da origem das raças humanas.

Que Deus Todo-Poderoso, tão benevolente para com os espíritas, me conceda a lucidez necessária para afastar de minha dissertação toda confusão, toda obscuridade e sobretudo todo erro.

Entro na matéria dizendo-vos que admitamos, inicialmente, como princípio, esta eterna verdade: O Criador deu a todos os seres da mesma raça um modo especial, mas seguro, para se entenderem reciprocamente. Não obstante, esse modo de comunicação, essa linguagem, era tanto mais restrita quanto mais inferiores eram as espécies. É em virtude dessa verdade, dessa lei, que os selvagens e os povos pouco civilizados possuem línguas tão pobres que uma porção de termos usados nas regiões favorecidas pela civilização lá não encontram vocábulos correspondentes, e é em obediência a essa mesma lei que as nações que progridem criam novas expressões para novas descobertas e novas necessidades.

Como eu disse alhures, a Humanidade já atravessou três grandes períodos: a fase bárbara, a fase hebraica e pagã e a fase cristã. A esta última sucederá o grande período espírita, cujos alicerces lançamos entre vós.

Examinemos, pois, a primeira fase e o começo da segunda, e aqui só posso repetir o que eu já disse. A primeira fase humana, que poderemos chamar préhebraica ou bárbara, arrastou-se por muito tempo e lentamente em todos os horrores e convulsões de uma barbárie terrível. Aí o homem é peludo como um animal selvagem e, como as feras, abriga-se em cavernas e nos bosques. Vive de carne crua e se repasta de seu semelhante, como de uma excelente caça. É o mais absoluto reino da antropofagia. Não há sociedade nem família! Alguns grupos dispersos aqui e ali, vivem na mais completa promiscuidade, sempre prontos a se entredevorarem. Tal é o quadro desse período cruel. Nenhum culto, nenhuma tradição, nenhuma ideia religiosa. Apenas as necessidades animais a satisfazer, eis tudo!

Prisioneira de uma matéria estupidificante, a alma fica morna e latente em sua prisão carnal. Ela nada pode contra os muros grosseiros que a encerram, e sua inteligência mal pode mover-se nos compartimentos de um cérebro estreito.

O olho é manso, a pálpebra pesada, o lábio grosso, o crânio achatado, e alguns sons guturais bastam como linguagem.

Nada prenuncia que desse animal bruto sairá o pai das raças hebraicas e pagãs. Contudo, com o tempo, eles sentem a necessidade de se defenderem contra os outros carnívoros, como o leão e o tigre, cujas presas terríveis e garras afiadas facilmente dominavam o homem isolado. Assim realiza-se o primeiro progresso social. Não obstante, o reinado da matéria e da força bruta se manteve durante toda essa fase cruel.

No homem dessa época, não procureis sentimentos nem razão nem linguagem propriamente dita. Ele obedece apenas à sua sensação grosseira, e só tem como objetivo comer, beber e dormir. Nada além disso. Pode-se dizer que o homem inteligente ainda está em germe, mas que não existe ainda.

Contudo, é preciso constatar que entre as raças brutais já aparecem alguns seres superiores, Espíritos encarnados com a tarefa de conduzir a Humanidade ao seu destino e apressar o surgimento das eras hebraica e pagã.

Devo acrescentar que, além desses Espíritos encarnados, o globo terrestre era visitado por esses ministros de Deus cuja memória foi conservada pela tradição sob os nomes de anjos e arcanjos, que quase diariamente se punham em contato com os seres superiores, Espíritos encarnados de que acabo de falar. A missão de alguns desses anjos continuou durante a maior parte da fase humanitária. Devo acrescentar que o rápido quadro que acabo de fazer, dos primeiros tempos da Humanidade, vos ensina um pouco a que leis rigorosas são submetidos os Espíritos que se comprometem a viver em planetas de formação recente.

A linguagem propriamente dita, como a vida social, não começa a ter um caráter certo senão a partir da era hebraica e da pagã, durante a qual o Espírito encarnado, sempre sujeito à matéria, começa a se revoltar e a quebrar alguns elos de sua pesada cadeia. A alma se agita em sua prisão carnal e por esforços reiterados reage energicamente contra as paredes do cérebro, cuja matéria sensibiliza. Ela melhora e aperfeiçoa, por um trabalho constante, o jugo de suas faculdades, assim desenvolvendo os órgãos físicos. Enfim, o pensamento pode ser lido num olhar límpido e claro. Já estamos longe das frontes achatadas! É que a alma se sente, se reconhece, tem consciência de si mesma e começa a compreender que independe do corpo. Desde então luta ela com ardor para se desvencilhar do amplexo de sua robusta rival. O homem se modifica de pouco em pouco e a inteligência se movimenta mais livremente num cérebro mais desenvolvido. Entretanto, constatamos que nessa época o homem ainda é circunscrito e cercado, como gado, o homem escravo do homem. A escravidão é consagrada pelo Deus dos Hebreus, tanto quanto pelos deuses pagãos, e Jeová, assim como Júpiter Olímpico, pede sangue e vítimas vivas.

Essa segunda fase oferece aspectos curiosos do ponto de vista filosófico. Já tracei um quadro rápido, que meu médium vos transmitirá em futuro próximo.

Como quer que seja, e para voltar ao tema em estudo, tende certeza de que não foi senão na época dos grandes períodos pastorais e patriarcais que a linguagem humana tomou um aspecto regular e adotou formas e sons especiais.

Durante essa época primitiva, em que a Humanidade saía dos cueiros e balbuciava na primeira infância, poucas palavras bastavam aos homens, para os quais ainda não tinha nascido a Ciência, cujas necessidades eram mais restritas, e cujas relações sociais paravam à porta das tendas, à soleira das famílias e, mais tarde, nos confins da tribo. Era a época em que o pai, o pastor, o ancião, o patriarca, numa palavra, dominava como senhor absoluto, com direito de vida e morte.

A língua primitiva foi uniforme. Mas, à medida que crescia o número de pastores, estes, deixando por sua vez a tenda paterna, foram constituir novas famílias em zonas desabitadas e, daí, novas tribos. Então a língua por eles usada se diferenciou gradativamente, de geração em geração, da que era usada na tenda paterna. Assim foram criados os vários idiomas.

Aliás, posto não seja meu propósito dar um curso de linguística, não vos passa despercebido que, nas línguas mais distanciadas, encontrais vocábulos cujo radical pouco variou e cuja significação é quase a mesma. Por outro lado, posto tenhais a pretensão de constituirdes um velho mundo, o mesmo motivo que corrompeu a língua primitiva, reina soberano em vossa França tão orgulhosa de sua civilização. Aí vedes as consonâncias, os termos e a significação variarem, já não direi de província a província, mas de comuna a comuna.

Invoco o testemunho dos que viajaram pela Bretanha, como dos que percorreram a Provença e o Languedoc. É uma variedade de idiomas e de dialetos que espanta a quem os quisesse coligir num dicionário único.

Uma vez que os homens primitivos, ajudados pelos missionários do Eterno, emprestaram a certos sons especiais outras tantas ideias especiais, foi criada a língua falada, e as modificações por ela sofridas mais tarde o foram sempre em razão do progresso humano. Consequentemente, conforme a riqueza da língua, pode-se estabelecer facilmente o grau de civilização atingido pelo povo que a fala.

O que posso acrescentar é que a Humanidade marcha para uma língua única, como consequência forçada de uma afinidade de ideias em Moral, em Política, e sobretudo em Religião.

Tal será a obra da filosofia nova, o Espiritismo, que hoje vos ensinamos.


ERASTO

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