Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Os servos - História de um criado

O caso descrito em nosso número de dezembro último, sob o título O tugúrio e o salão, lembra-nos outro, um tanto pessoal. Numa viagem feita há dois anos, vimos, numa família da alta sociedade, um jovem criado, cujo rosto fino e inteligente nos chamou a atenção pelo ar de distinção. Nada, em suas maneiras, denotava inferioridade. Sua dedicação ao serviço dos amos não tinha essa obsequiosidade servil própria da gente de tal condição. Voltando àquela família no ano seguinte, não mais vimos o rapaz e perguntamos se fora despedido. “Não”, disseram-me, “ele foi passar uns dias em sua terra e morreu. Lamentamos muito, pois era um excelente empregado e tinha sentimentos realmente acima de sua posição. Era-nos muito dedicado e nos deu provas do maior devotamento.” Mais tarde veio-nos a ideia de evocá-lo. Eis o que ele nos disse:

1. ─ Em minha penúltima encarnação eu era, como se diz na Terra, de boa família, arruinada pela prodigalidade de meu pai. Muito cedo fiquei órfão e sem recursos. O Sr. de G... foi meu benfeitor. Educou-me como filho e deu-me uma boa educação, que me encheu de vaidade. Na última existência eu quis expiar meu orgulho, nascendo em condição servil e tive ocasião de provar minha dedicação ao meu benfeitor. Até lhe salvei a vida, sem que ele o tivesse notado. Era ao mesmo tempo uma prova, da qual tirei proveito, pois tive bastante força para não me corromper no contacto com um meio geralmente vicioso. A despeito dos maus exemplos, fiquei puro, pelo que dou graças a Deus por ter sido recompensado com a felicidade de que desfruto.

2. ─ Em que condições você salvou a vida do Sr. de G...? ─ Num passeio a cavalo, em que só eu o seguia, percebi uma grande árvore que caía ao seu lado, sem que ele a visse. Chamei-o, com um grito terrível. Ele voltou-se bruscamente, enquanto a árvore caía aos seus pés. Sem o movimento que provoquei, ele teria sido esmagado.

NOTA: Ao ser relatado o fato ao Sr. de G..., ele lembrou-se perfeitamente.

3. ─ Por que você morreu tão jovem? ─ Deus tinha julgado minha prova suficiente.

4. ─ Como você pôde tirar proveito da prova, se não tinha lembrança da vida anterior e da causa que a motivara? ─ Em minha humilde posição, restava-me o instinto do orgulho, que tive a sorte de dominar. Isto tornou a prova proveitosa, sem o que eu teria de recomeçá-la. Em seus momentos de liberdade, o meu Espírito se recordava e, ao despertar, ficava-me um desejo intuitivo de resistir às tendências, que sentia serem más. Tive mais mérito na luta do que se me lembrasse do passado. A lembrança de minha antiga posição teria exaltado o meu orgulho, perturbando-me, ao passo que tive que lutar apenas contra o arrastamento da nova posição.

5. ─ Você havia recebido uma educação brilhante. De que isto lhe serviu na última existência, já que você não se recordava dos conhecimentos que havia adquirido? ─ Esses conhecimentos teriam sido inúteis, e até mesmo um contra-senso, em minha nova situação. Ficaram latentes, e hoje eu os reencontro. Contudo, não me foram inúteis, pois desenvolveram minha inteligência. Instintivamente eu tinha gosto pelas coisas elevadas, o que me inspirava repulsa pelos exemplos baixos e ignóbeis que tinha sob meus olhos. Sem tal educação eu teria sido um simples criado.

6. ─ Os exemplos de servidores dedicados a seus amos até à abnegação, têm por causa vínculos anteriores? ─ Sem dúvida. É pelo menos o caso mais comum. Por vezes tais criados são membros da própria família ou, como eu, devedores que pagam uma dívida de reconhecimento e cujo devotamento lhes ajuda a progredir. Não sabeis de todos os efeitos das simpatias e antipatias que essas relações anteriores produzem no mundo. Não! A morte não interrompe tais relações, que se perpetuam, às vezes, de um a outro século.

7. ─ Por que tais exemplos de devotamento dos servos são hoje tão raros? ─ Sua causa é o espírito de egoísmo e de orgulho do vosso século, desenvolvido pela incredulidade e pelas ideias materialistas. A verdadeira fé é destruída pela cupidez e pelo desejo de ganho, e com ela os devotamentos. Trazendo os homens para o sentimento do verdadeiro, o Espiritismo fará renascer as virtudes esquecidas.

NOTA: Nada pode melhor que este exemplo ressaltar os benefícios do esquecimento das vidas anteriores. Se o Sr. de G... se tivesse recordado quem tinha sido seu jovem criado, ficaria muito constrangido e não o teria conservado naquela condição. Assim, teria entravado a prova que para ambos foi proveitosa.

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