Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Espíritos incrédulos e materialistas
(Sociedade espírita de Paris, 27 de março de 1863)

Pergunta: ─ Na evocação do Sr. Viennois, feita na última sessão, encontra-se esta frase: “Vossa prece comoveu muitos Espíritos levianos e incrédulos.” Como podem os Espíritos ser incrédulos? O meio em que se acham não é a negação da incredulidade?

Pedimos aos Espíritos que quiserem comunicar-se, que tratem desta questão, se a julgarem propositada.

Resposta (Médium, Sr. d’Ambel): ─ A explicação que me pedis não está toda escrita ao longo de vossas obras? Perguntais por que os Espíritos incrédulos ficaram comovidos. Mas vós mesmo não tendes dito que os Espíritos que se achavam na erraticidade aí haviam entrado com suas aptidões, conhecimentos e maneira de ver antigos? Meus Deus! Sou ainda muito noviço para resolver a vosso contento as questões espinhosas da doutrina. Não obstante posso, por experiência, por assim dizer recentemente adquirida, responder às questões sobre fatos. No mundo em que habitais, acreditava-se geralmente que a morte vem de repente modificar as opiniões dos que partem, e que a venda da incredulidade é violentamente arrancada aos que na Terra negavam Deus. Aí está o erro, porque a punição começa justamente, para esses, em permanecer na mesma incerteza relativamente ao Senhor de todas as coisas e conservar a mesma dúvida da Terra. Não, crede-me, a vista obscurecida da inteligência humana não percebe a luz instantaneamente. Procede-se, na erraticidade, pelo menos com tanta prudência quanto na Terra, e não são projetados os raios da luz elétrica sobre os olhos dos doentes a fim de curá-los.

A passagem da vida terrena à espiritual oferece, é certo, um período de confusão e de turbação para a maioria dos que desencarnam, mas há alguns, já em vida desprendidos dos bens terrenos, que realizam essa transição tão facilmente como uma pomba que se eleva nos ares. É fácil vos dardes conta dessa diferença examinando os hábitos dos viajantes que embarcam para atravessar os oceanos. Para alguns a viagem é um prazer; para a maioria é um sofrimento vulgar, mas afligente, que durará até o desembarque. Pois bem! É isso que acontece, por assim dizer, para quem viaja da Terra para mundo dos Espíritos. Alguns se desprendem rapidamente, sem sofrimento e sem perturbação, ao passo que outros são submetidos ao mal da travessia etérea. Mas acontece o seguinte: Assim como os viajantes que desembarcam em terra, ao sair do navio, recobram o aprumo e a saúde, também o Espírito que transpôs todos os obstáculos da morte acaba por se achar, como no seu ponto de partida, com a consciência límpida e clara de sua individualidade.

É certo, portanto, meu caro senhor Kardec, que os incrédulos e os materialistas absolutos conservam sua opinião além do túmulo, até o momento em que a razão ou a graça tiver despertado em seu coração o pensamento verdadeiro ali escondido. Daí essa

difusão de ideias nas manifestações e essa divergência nas comunicações dos Espíritos de além-túmulo. Daí alguns ditados ainda manchados de ateísmo ou de panteísmo.

Permiti-me, ao terminar, voltar às questões que me são pessoais. Eu vos agradeço por me terdes evocado. Isto me ajudou a reconhecer-me. Agradeço-vos também as consolações dirigidas à minha mulher e vos peço continueis vossas boas exortações em relação a ela, a fim de sustentá-la nas provas que a esperam. Quanto a mim, estarei sempre junto a ela e inspirá-la-ei.

VIENNOIS

Pergunta: ─ Compreende-se a incredulidade em certos Espíritos, mas não se compreenderia o materialismo, pois seu estado é um protesto contra o reino absoluto da matéria e o nada após a morte.

Resposta: (Médium, Sr. d’Ambel) ─ Só uma palavra: Todos os corpos sólidos ou fluídicos pertencem à substância material, isto está bem demonstrado. Ora, os que em vida só admitiam um princípio na Natureza ─ a matéria ─ muitas vezes não percebem, mesmo após a morte, senão esse princípio único, absoluto.

Se refletísseis sobre os pensamentos que os dominaram por toda sua vida, certamente encontrá-los-íeis, ainda hoje, sob o inteiro domínio dos mesmos pensamentos. Outrora eles se consideravam como corpos sólidos; hoje se olham como corpos fluídicos, eis tudo. Notai bem, eu vos peço, que eles se apercebem sob uma forma claramente circunscrita, embora vaporosa, mas idêntica à que tinham na Terra, em estado sólido ou humano, de sorte que eles não veem em seu novo estado senão uma transformação de seu ser naquele em que não tinham pensado, mas ficam convencidos de que é um encaminhamento para o fim a que chegarão, quando estiverem suficientemente desprendidos, para se dissolverem no grande todo universal. Nada mais teimoso do que um sábio, e eles persistem a pensar que, nem por ser demorado, esse fim é menos inevitável.

Uma das condições de sua cegueira moral é a de encerrá-los mais violentamente nos laços da materialidade e, consequentemente, de impedi-los de se afastarem das regiões terrestres ou similares à Terra. E da mesma forma que a grande maioria dos encarnados aprisionados na carne não podem perceber as formas vaporosas dos Espíritos que os cercam, também a opacidade do envoltório dos materialistas lhes veda a contemplação das entidades espirituais que se movem, tão belas e tão radiosas, nas altas esferas do império celeste.

ERASTO.


Outra: (Médium, Sr. A. Didier) ─ A dúvida é a causa das penas e muitas vezes dos erros deste mundo. Ao contrário, o conhecimento do Espiritualismo causa as penas e os erros dos Espíritos.

Onde estaria o castigo se os Espíritos não reconhecessem os seus erros pela consequência, que é a realidade penitenciária da outra vida? Onde estaria o seu castigo se sua alma e seu coração não sentissem todo o erro do cepticismo terreno e o nada da matéria? O Espírito vê o Espírito como a carne vê a carne. O erro do Espírito não é o erro da carne, e o homem materialista que aqui duvidou não mais duvida lá em cima.

O suplício dos materialistas é lamentar as alegrias e as satisfações terrenas, eles que ainda não podem compreender nem sentir as alegrias e as perfeições da alma. E vede o rebaixamento moral desses Espíritos que vivem completamente na esterilidade moral e física, de lamentar esses bens que momentaneamente constituíram a sua alegria e atualmente constituem o seu suplício.

Agora, é verdade que sem ser materialista pela satisfação de suas paixões terrenas, pode-se sê-lo mais no campo das ideias e do espírito do que nos atos da vida. É o que se chama livres-pensadores, e são esses que não ousam aprofundar a causa de sua existência.

Esses, no outro mundo, serão igualmente punidos. Eles nadam na verdade, mas não são por ela penetrados. Seu orgulho abatido os faz sofrer, e eles lamentam aqueles dias terrenos em que, ao menos, tinham liberdade de duvidar.

LAMENNAIS

OBSERVAÇÃO: À primeira vista esta apreciação parece em contradição com a de Erasto. Este admite que certos Espíritos podem conservar as ideias materialistas, enquanto Lamennais pensa que essas ideias são apenas o pesar dos prazeres materiais, mas que esses Espíritos estão perfeitamente esclarecidos quanto ao seu estado espiritual. Os fatos parecem vir em apoio à opinião de Erasto. Se vemos Espíritos que mesmo muito depois da morte ainda se julgam vivos, vagam ou creem vagar nas ocupações terrenas, é que eles têm completa ilusão quanto à sua posição e não se dão conta de seu estado espiritual. Se não se julgam mortos, não seria de admirar que tivessem conservado a ideia do nada após a morte, que para eles ainda não veio. Foi sem dúvida neste sentido que quis falar Erasto.

Resposta: ─ Evidentemente eles têm a ideia do nada, mas é uma questão de tempo. Chega o momento em que no alto se rompe o véu e as ideias materialistas se tornam inaceitáveis. A resposta de Erasto se refere a fatos particulares e momentâneos. Eu não falava senão de fatos gerais e definidos.

LAMENNAIS.

OBSERVAÇÃO: A divergência era apenas aparente e provinha do ponte de vista sob o qual cada um encarava a questão. É evidente que um Espírito não pode ficar perpetuamente materialista. Perguntava-se se essa idéia seria necessàriamente destruída logo após a morte. Ora, ambos os Espíritos são concordes neste ponto, pronunciando-se pela negativa. Acrescentemos que a persistência da dúvida sobre o futuro é um castigo para o Espírito incrédulo. É para ele uma tortura tanto mais pungente quando não tem as preocupações terrenas para o distrair.

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