Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Distinto publicista, por cujo caráter professamos a mais profunda estima, e cuja simpatia foi conquistada pela filosofia espírita, mas ao qual não foi ainda demonstrada a utilidade do ensino dos Espíritos, escreve-nos o que se segue:

“...Creio que há muito tempo a Humanidade estava de posse dos princípios que expusestes, princípios de que gosto e defendo sem o auxílio das comunicações espíritas, o que não quer dizer, notai-o bem, que eu negue o auxílio das luzes divinas.

“Cada um de nós recebe esse auxílio num certo limite, conforme seu grau de boa vontade, de seu amor ao próximo, e também na medida da missão que tenha a cumprir durante sua passagem pela Terra.

“Não sei se vossas comunicações vos puseram na posse de uma única ideia, de um só princípio que não tenha sido precedentemente exposto por uma série de filósofos e de pensadores que desde Confúcio até Platão, Moisés, Jesus Cristo, Santo Agostinho, Lutero, Diderot, Voltaire, Condorcet, Saint-Simon, etc., fizeram progredir o nosso humilde planeta. Não o creio, e se estiver enganado, ser-vos-ia muito reconhecido pelo trabalho que tivésseis em demonstrar o meu erro. Notai bem que não condeno vossos processos espíritas: julgo-os inúteis para mim, etc.”

Meu caro senhor, vou responder a vossa pergunta nalgumas palavras. Nem tenho o vosso talento, nem a vossa eloquência, mas tentarei ser claro, não só para vós, mas para meus leitores, aos quais minha resposta poderá servir de ensino, motivo pelo qual o faço através de minha revista.

Para começar, direi que, de duas uma: ou as comunicações com os Espíritos existem, ou não existem. Se não existem, milhões de pessoas que diariamente se comunicam com eles, são vítimas de uma ilusão, e eu mesmo teria tido uma singular ideia ao lhes atribuir aquilo de que poderia ter tido o mérito. Mas é inútil discutir este ponto, porque não o contestais. Se essa comunicação existe, deve ter sua utilidade, porque Deus nada faz de inútil. Ora, essa utilidade não só ressalta desse mesmo ensino, mas ainda, e sobretudo, das consequências desse ensino, como veremos dentro em pouco.

Dizeis que essas comunicações nada ensinam de novo além do que já foi ensinado por todos os filósofos, desde Confúcio, de onde concluís que são inúteis. O provérbio “Não há nada de novo sob o Sol” é perfeitamente certo e Edouard Fournier o demonstrou claramente em sua interessante obra do Vieux neuf. O que ele disse das obras criadas pelo gênio humano é também verdadeiro, em matéria filosófica, pela razão muito simples que as grandes verdades são de todos os tempos e em todos os tempos devem ter sido reveladas a homens de gênio.

Mas porque um homem formulou uma ideia, segue-se que aquele que a formula depois dele seja inútil? Sócrates e Platão não enunciaram princípios de moral idênticos aos de Jesus? Daí deve concluir-se que a doutrina de Jesus foi uma superfluidade? Se assim fosse, bem poucos trabalhos seriam de real utilidade, pois que da maior parte deles pode-se dizer que outra pessoa teve o mesmo pensamento e que bastaria recorrer ao primeiro.

Vós mesmo, meu caro senhor, que consagrais o vosso talento ao triunfo das ideias de progresso e de liberdade, o que dizeis que cem outros antes não tenham dito? Daí deve deduzir-se que vos deveríeis calar? Não o pensais.

Confúcio, por exemplo, proclama uma verdade. Depois dele, um, dois, três, uma centena de outros homens que vêm depois dele a desenvolvem, a completam e a apresentam sob outra forma, se bem que essa verdade, que tinha ficado nos arquivos da história e como privilégio de alguns eruditos, se populariza, se infiltra nas massas e acaba por se tornar uma crença vulgar. Que teria acontecido às ideias dos filósofos antigos se elas não tivessem sido retomadas em segunda mão por escritores modernos? Quantos as conheceriam hoje? É assim que cada um por sua vez vem dar a sua martelada.

Suponhamos, então, que os Espíritos nada de novo tenham ensinado; que não tenham revelado a menor verdade nova; numa palavra, que apenas tenham repetido todas aquelas professadas pelos apóstolos do progresso. Então, nada significam esses princípios hoje ensinados pela voz do mundo invisível em todas as partes do mundo, no recesso de todas as famílias, desde o palácio até a choupana? Então nada são essas marteladas diárias, a toda hora e por toda parte? Credes que as massas não estão mais penetradas e impressionadas pelas máximas vindas de seus parentes e amigos do que pelas de Sócrates e de Platão, que eles jamais leram, ou que só conhecem de nome?

Como vós, meu caro senhor, que combateis toda sorte de abusos, desdenhais semelhante auxiliar, um auxiliar que bate a todas as portas, desafiando todas as conjuras e todas as medidas inquisitoriais? Só este auxiliar ─ e um dia tereis a prova ─ triunfará sobre todas as resistências, porque toma os abusos pela base, apoiando-se na fé que se extingue e que ele vem consolidar.

Pregais a fraternidade em termos eloquentes, isto é ótimo, e eu vos admiro. Mas, o que é a fraternidade com egoísmo? O egoísmo será sempre a pedra de tropeço para a realização das mais generosas ideias. Exemplos antigos e recentes não faltariam em apoio a essa proposição. É preciso, pois, tomar o mal pela raiz, e para isto combater o egoísmo e o orgulho, que fizeram e farão abortar os projetos mais bem concebidos. Mas como destruir o egoísmo sob o império das ideias materialistas, que concentram a ação do homem na vida presente? Para aquele que nada espera desta vida, a abnegação não tem a menor razão de ser e o sacrifício é uma tolice, porque reduz os curtos prazeres deste mundo.

Ora, quem melhor que o Espiritismo dá essa fé inalterável no futuro? Como chegou ele a triunfar da incredulidade de tão grande número de pessoas e a domar tantas paixões más, senão pelas provas materiais que ele dá? E como pode ele dar estas provas sem as relações estabelecidas com os que não mais estão na Terra? Então, de nada vale ter ensinado aos homens de onde eles vêm, para onde vão, e o futuro que lhes é reservado? A solidariedade que ele ensina já não é simples teoria, mas é uma consequência inevitável das relações existentes entre os mortos e os vivos, relações que fazem da fraternidade entre os vivos não só um dever moral, mas uma necessidade, porque vem do interesse na vida futura.

As ideias de casta, os preconceitos aristocráticos, produtos do orgulho e do egoísmo, não foram em todos os tempos um obstáculo à emancipação das massas? Bastará dizer em teoria, aos privilegiados da fortuna: Todos os homens são iguais? O Evangelho bastou para persuadir os cristãos possuidores de escravos que esses escravos são seus irmãos? Ora, quem pode destruir esses preconceitos; quem nivela todas as cabeças, melhor do que a certeza de que nas últimas camadas da Sociedade se acham seres que ocuparam o topo da escala social; que entre os nossos criados, entre aqueles a quem damos esmola, podem achar-se parentes, amigos, homens que nos comandaram; que, enfim, os que agora estão no alto, podem descer para o último degrau? Estará nisso um ensino estéril para a Humanidade? Essa ideia é nova? Não. Mais de um filósofo a emitiu e pressentiu esta grande lei da justiça divina. Mas de nada vale dar-lhes a prova palpável e evidente?

Muitos séculos antes de Copérnico, Galileu e Newton, a redondeza e o movimento da Terra tinham sido estabelecidos em tese. Esses sábios vieram demonstrar o que os outros apenas haviam suspeitado. Assim, há Espíritos que vêm provar as grandes verdades que permaneceram como letra morta para a maioria, dando-lhes por base uma lei da Natureza.

Ah! meu caro senhor! Se soubésseis, como eu, quantos homens que teriam sido entraves à realização das ideias humanitárias mudaram a maneira de ver e hoje, graças ao Espiritismo, se tornam seus campeões, não mais diríeis que o ensino dos Espíritos é inútil. Vós o bendiríeis como a tábua de salvação da Sociedade e apelaríeis com todas as veras à sua propagação. Foi o ensino dos filósofos que lhes faltou? Não, porque quase todos são homens esclarecidos, mas, para eles, os filósofos eram sonhadores, utopistas, conversadores; que digo eu? revolucionários. Era preciso tocar-lhes o coração, e o que os tocou foram as vozes de além-túmulo, que se fizeram ouvir em seus próprios lares.

Permiti-me, caro senhor, por hoje, ficar por aqui. A abundância de matéria me obriga a deixar para o próximo número a questão analisada sob outro ponto de vista.

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