Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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(Por Hippolyte Renaud, antigo aluno da escola Politécnica)

A Presse de 27 de julho de 1862 dava a notícia seguinte sobre a obra acima indicada. Ela se liga de maneira muito direta à Doutrina Espírita para que os leitores saibam que a reproduzimos de bom grado. Nós mesmos poderíamos ter feito uma análise da obra, mas preferimos a de uma pessoa desinteressada no assunto. Limitarnos-emos a fazê-la seguir de algumas considerações. Diz o redator:

O que de mais atraente para o espírito e mais refrescante para a alma do que encontrar, na hora presente, um homem de fé sincera, singela e profunda, um homem que crê e entretanto raciocina, e raciocina sem preconceitos, para buscar a verdade, à luz de sua consciência? Tal é o Sr. Renaud.

Nele as matemáticas e a Ciência não mataram o sentimento nem turvaram as fontes misteriosas que nos ligam ao infinito pela fé. O Sr. Renaud é um crente firme, convicto, um excelente cristão, mesmo sendo um mau católico, do que não se defende. Ao contrário.

Sua razão esclarecida, não menos que seu coração amante, lhe faz repelir para bem longe a ideia de um Deus vingador, ciumento e colérico; de um Deus que teria escolhido a cólera para ligar a criatura ao seu autor; de um Deus que pune o filho pela falta do pai, coisa iníqua aos olhos da justiça humana.

O Deus do Sr. Renaud é um Deus de luz e de amor. A harmonia de sua obra infinita manifesta sua onipotência e sua bondade. O homem não é sua vítima, mas seu colaborador numa parte mínima mas ainda gloriosa e proporcional às suas forças. Então, por que o mal e como explicá-lo? O mal não vem de uma queda primitiva que teria mudado todas as condições da vida humana. Ele tem por causa o descumprimento da lei de Deus e a desobediência do homem, usando mal o livrearbítrio. Teríamos achado mais claro se o Sr. Renaud tivesse dito simplesmente que o homem começa pelo instinto, e que só gradativamente pôde desenvolver seus sentimentos superiores e sua inteligência.

O homem espécie, como todos os seres vivos, não pode de repente achar-se na plenitude de seu ser. Percorre evoluções sucessivas e normais. Sua infância social é caracterizada pelo domínio dos instintos. Daí sua miséria, sua ignorância, sua brutalidade. À medida que se eleva na vida, pouco a pouco se desprende do lodo das primeiras idades. A inteligência cresce, os sentimentos ganham força, e ele começa a humanizar-se. Quanto mais o homem compreende, tanto mais se liga à lei, mais se torna religioso e concorre, de sua parte, para a harmonia geral.

O sofrimento é uma advertência, um estimulante para se livrar do mal, para se retirar da sombra e marchar para a luz. Quanto mais avança, mais horror tem ao mundo do instinto, da luta, da violência e da guerra; quanto mais vê e compreende, melhor aspira ao mundo da paz e da ordem, ao império da razão, ao reino dos sentimentos elevados, que são a dignidade e o sinal sagrado de sua espécie.

Daí resulta que, graças à Ciência, à Industria, ao incessante progresso da sociabilidade, o gênero humano tende a constituir-se como o rei ou, se se preferir um termo menos ambicioso, como o gerente de seu globo. Mas depois, e admitindo por um momento esta hipótese que, a bem dizer, parece tornar-se mais certa a cada dia, mas depois, restará sempre a satisfazer esse desejo insaciado do homem, que não pode parar e limitar-se ao presente, por mais magnífico que possa ser?

Que me importa, afinal de contas, vossa felicidade material e terrena, se me deixa a alma vazia e sedenta? A gente se sente tomado de um supremo tédio e de um grande desgosto em presença de tal felicidade que dura tão pouco.

Isto é verdade, responde o Sr. Renaud, e é aqui que ele triunfa. Iluminado pela Ciência, sua fé robusta nos destinos eternos do homem lhe mostra todo um futuro infinito de atividade consciente e de alegrias paradisíacas.

Ao primeiro despertar do pensamento, aos primeiros tremores da alma, o homem eleva o olhar ao céu, interroga suas profundezas infinitas e busca qual pode ser o seu elo com o universo que entrevê. Esta existência terrena, tão curta e por vezes tão triste, não lhe basta. Ele sente que participa do infinito e a todo preço nele quer encontrar o seu lugar. O homem tem horror ao nada, como a Natureza o tem ao vácuo. Em vez de ficar sem ideal, ele se lançará louco nas crenças mais estranhas. Daí tantas concepções paradisíacas mais ou menos loucas, mas que atestam essa necessidade absoluta e fundamental de sentir-se religado ao infinito, assegurado da imortalidade.

Conhece-se o paraíso dos budistas; os Campos Elíseos dos gregos; o paraíso dos selvagens, com suas florestas e prados abundantes de caça; o paraíso de Maomé, com suas delícias materiais e suas huris sem manchas.

O paraíso católico, que coloca a Humanidade num estado de be atitude contemplativa infinita, é uma concepção relativa às épocas cruéis em que o trabalho era considerado sofrimento e castigo; onde o sofrimento geral é tal que a resignação neste mundo e o repouso no outro puderam parecer a soberana sabedoria e o mais elevado ideal.

Mas, evidentemente, esta hipótese é inteiramente contraditória com as noções mais simples e mais claras da existência. Viver é ser; ser é agir com todas as forças de suas faculdades e de sua energia vital. Viver é aspirar e transformar-se incessantemente.

A metempsicose de Pitágoras, embora respeitando a ideia de atividade, é incompleta, no sentido que limita a transformação por passagens em organismos que vivem na face da Terra e ainda por não levar em conta a lei do progresso ascendente que governa todas as coisas.

Segundo o Sr. Renaud, só há uma maneira racional de encarar esta questão da imortalidade.

O autor repele, de início, a concepção que, depois de uma temporada no mundo visível, lugar de provação, colocaria o homem no mundo invisível, o Paraíso, no estado de beato contemplativo e mais que desinteressado de seus semelhantes e de sua obra terrena. Que eleitos e que bem-aventurados seriam esses seres despojados de todo desejo e de toda aspiração, de toda atividade fecunda, de todo interesse por seu passado e por seus semelhantes, pelo Universo infinito, onde trabalharam, sentiram e pensaram!...

O Sr. Renaud repele igualmente a hipótese de uma série indefinida de existências, quer na Terra, quer noutros globos. Esse gênero de imortalidade já possui uma grande vantagem sobre a primeira concepção, pois abre um campo indefinido à atividade humana. Os Srs. Jean Reynaud, Pierre Leroux, Henri Martin e Lamennais se ligam mais ou menos a essa ideia. Mas há um ponto capital que a deteriora pela base: a ausência da memória. Que me importa uma imortalidade de que não tenho consciência e que só Deus conhece? Para que minha imortalidade seja real é preciso que numa vida diferente de minha vida atual eu tenha a lembrança de minhas vidas anteriores; eu tenha consciência da continuidade e da identidade de meu ser. Só com esta condição sou verdadeiramente imortal, participando do Infinito e consciente de minha função no Universo. Só conhecemos o nosso ser por suas manifestações, porque sua essência virtual nos escapa. Em que, pois, repugnaria à nossa razão admitir que nosso ser, cuja persistência constatamos aqui em baixo nas suas incessantes modificações, persistisse eternamente? Ele apenas muda de forma e de órgãos, conforme o meio que atravessa em suas sucessivas encarnações.

É assim que o Sr. Renaud chega a expor sua concepção, que satisfaz a essa condição essencial, conservar a memória, e que é, além disso, conforme à justiça e à onipotente bondade de Deus.

No Universo não há vazio, como não há o nada. Ora, se o mundo visível está em toda a parte, o mundo invisível não está em parte alguma, diz judiciosamente o Sr. Renaud, a menos que também esteja em toda a parte.

Nesta Terra o homem tem dois estados bem distintos. Em vigília ele se lembra geralmente de todos os seus atos e tem consciência de si mesmo; durante o sono perde a memória e a consciência. Consequentemente, porque não teria o homem dois distintos modos de existências, sempre ligadas entre si, sempre unidas à vida do espaço e do planeta? De início, a existência que conhecemos aqui embaixo, depois outra existência, de ordem mais elevada, na qual o indivíduo se organiza e se reencarna por meio de fluidos imponderáveis; participa de maneira mais larga e mais extensa da vida do nosso turbilhão; conserva então a memória de suas existências anteriores e possui plena consciência de seu papel e de sua função ao Universo? A existência mundana ou visível está em relação com o sono, e a existência transmundana ou etérea está em analogia com a vigília?

Nesta hipótese, a solidariedade do gênero humano, nas suas gerações presentes e futuras, nos aparece completa e inteira. Cada um de nós viveu, vive e viverá em diferentes épocas da vida da espécie nesta Terra, e no seu duplo modo visível e invisível. Cada um de nós aí nasce e daí sai, conforme a lei de números, pesos e medidas que preside à harmonia dos mundos. Nossas diversas alternâncias são contadas como os dias e as estações. Cada um de nós renasce na Terra, toma sua classe na espécie e sua função no trabalho geral, de acordo com o seu valor e segundo a lei da ordem universal. Talvez cada um de nós passe pelos diversos estados e funções que nos apresenta o conjunto da espécie. Seguramente a mais absoluta justiça preside a essas transformações, como a mais harmoniosa ordem brilha na eterna criação, nas variadas combinações que caracterizam todo organismo e todo ser vivo. Renascemos para a vida etérea e dela saímos sob essas mesmas condições de ordem e de harmonia.

Tal é a concepção do Sr. Renaud, que aqui não posso expor com todo o desenvolvimento conveniente. É preciso recorrer ao seu livro, claro, simples, rápido, onde uma fé profunda unida a uma razão tão elevada quanto imparcial, mantém constantemente o leitor sob o encanto de uma teoria tão consoladora quanto religiosa e grandiosa.

A livre espontaneidade do homem, sua solidariedade íntima e incessante com os seus semelhantes, com o seu globo, com o seu turbilhão, com o Universo; sua atividade cada vez mais progressiva, eficaz, irradiante, em harmonia com as leis divinas; uma carreira infinita para sua eterna aspiração; a onipotência e a bondade de Deus justificadas, explicadas e glorificadas; o amor como elo entre Deus e o homem, eis o que ressalta desse livrinho, o mais completo de todos os que foram escritos sob a inspiração desta grande sentença: “Os desejos do homem são as promessas de Deus.”

E. DE POMPÉRY


Este artigo provocou as duas cartas seguintes, igualmente publicadas na Presse de 31 de julho e 5 de agosto de 1862.

“Paris, 29 de julho de 1862.

Ao redator.

“Senhor,

“Acabo de ler na Presse de ontem de tarde a seguinte passagem (artigo do Sr. de Pompéry, sobre a obra do Sr. Renaud):

“O Sr. Renaud repele a hipótese de uma série indefinida de existências, quer sobre a Terra, quer noutros globos... Hipótese a que se ligam mais ou menos os Srs. Jean Reynaud, Pierre Leroux, Henri Martin e Lamennais... Mas há um ponto capital que a deteriora pela base: a ausência da memória. Que me importa uma imortalidade de que não tenho consciência e que só Deus conhece? Para que minha imortalidade seja real, é preciso que numa vida diferente de minha vida atual eu tenha a lembrança de minhas vidas anteriores, tenha consciência da continuidade e da identidade de meu ser.”

“O Sr. de Pompéry tem razão, em minha opinião: uma metempsicose indefinida e sem memória não é a imortalidade. Mas, se tem razão quanto às ideias, não a tem quanto às pessoas. Dos quatro escritores que cita, só um professou a doutrina que ele combate: o Sr. Pierre Leroux, em seu livro Humanité. De minha parte, considerando-se que fui citado, devo comparecer. Embora sem títulos para figurar ao lado de três filósofos célebres, devo dizer que minha opinião é a exposta acima pelo Sr. de Pompéry.

“Quanto ao Sr. Jean Reynaud, ele fez, de certo modo, desta opinião o coroamento de seu livro Terre et Ciel, onde apresenta a ausência de memória como condição das existências inferiores, e a memória readquirida e conservada para sempre como atributo essencial da vida mais alta.

“Também não creio que o Sr. Lamennais, numa época qualquer de sua carreira, tenha de modo algum parecido inclinar-se à ideia da transmigração inconsciente e indefinida. Ela era muito contrária a todas as suas tendências.

“Ser-vos-ei reconhecido, senhor redator chefe, se acolherdes esta reclamação, e rogo aceiteis meus mais distintos sentimentos.

“HENRI MARTIN”


Ao redator,

“Senhor,

“Apreciando o livro do Sr. Renaud, eu disse, de acordo com o autor, que os Srs. Henri Martin, Jean Reynaud, Pierre Leroux e Lamennais, de acordo com os sistemas por eles adotados, não podiam conservar no homem a memória em suas existências ulteriores. Isto não implica que no pensamento desses filósofos não estivesse a ideia de conservar no homem, nas suas existências indefinidas, a identidade e a perpetuidade de seu ser por meio da memória.

“A reclamação do Sr. Henri Martin seria, pois, muito justa, do ponto de vista de sua intenção, o que constato com prazer. Resta saber agora se o Sr. Renaud, discutindo os sistemas de seus ilustres contraditores, não tem razão de concluir pela sua improcedência. Nisto está toda a questão, na qual não posso entrar. É preciso ver o debate no livro do Sr. Renaud, que aliás testemunha a mais alta simpatia por esses homens eminentes.

“Recebei, etc.

E. DE POMPÉRY

Eis, pois, um debate travado seriamente num jornal, sem pilhérias vulgares e tolas, sobre a questão da pluralidade das existências, uma das bases fundamentais da Doutrina Espírita, por homens cujo valor intelectual não poderia ser contestado, o que prova não ser ela tão absurda quanto a alguns apraz dizer.

Se se quiser aprofundar mais as ideias emitidas no artigo do Sr. de Pompéry, encontrar-se-ão todas as da Doutrina Espírita sobre esse ponto. Só faltam, para completá-las, as relações entre o mundo visível e o invisível, de que não se cogita.

Pela simples força do raciocínio e da intuição, esses senhores, aos quais poderiam juntar-se muitos outros, tais como Charles Fourier e Louis Jourdan, chegaram ao ponto culminante do Espiritismo, sem ter passado pela fieira intermediária. A única diferença entre eles e nós é que eles encontraram a coisa por si mesmos, ao passo que a nós foi revelada pelos Espíritos e, aos olhos de certa gente, aí está o seu maior erro.

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