Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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O Caid Hassan, curador de tripolitano ou a benção do sangue

O fato que segue, publicado no Tour du monde, páginas 74 e seguintes, é tirado dos Promenades dans la Tripolitaine, pelo Sr. Barão de Krafft.

“Muitas vezes tenho como guia e companheiro de passeio nas excursões fora da cidade, o cavas-bachi (chefe dos janízaros) do consulado da França, que o cônsul geral tem a gentileza de pôr à minha disposição. É um magnífico negro de Ouadaï, de seis pés de altura e que, a despeito da barba grisalha, conservou toda a vitalidade e toda a energia da mocidade. O caïd Hassan não é homem comum: durante dezoito anos, ao tempo dos Caramanlys, ele governou a tribo dos Ouerchéfâna e ninguém melhor que ele soube manter no freio essa gentalha inquieta. Valente até a temeridade, sempre defendeu os interesses de seus administrados contra as tribos vizinhas e, se necessário, contra o próprio governo; mas, ao mesmo tempo, os seus não mais podiam entregar-se aos seus caprichos e não brincavam com a severidade do caïd Hassan. Para ele, a vida de um homem era pouco mais preciosa que a de um carneiro, e certamente ficaria muito embaraçado se lhe perguntassem o número exato de cabeças que ele tinha feito cair com sua mão, tanto a sua consciência está tranquila a esse respeito. Excelente homem, aliás, completamente dedicado ao consulado ao qual ele serve há dez anos.

“Numa de nossas primeiras saídas, vi um grupo de cinco ou seis mulheres aproximar-se dele com um ar súplice. Duas entre elas tinham nos braços pobres criancinhas de peito, cujo rosto, cabeça e pescoço estavam cobertos por uma placa dartrosa e de crostas purulentas. Era horrível e desagradável de ver.

“─ Nosso pai, disseram as mães desoladas ao caïd Hassan, é o profeta de Deus que te traz perto de nossa casa, porque nós queríamos ir à cidade para te encontrar e há bem dez dias que esperávamos a ocasião. O djardoun (pequeno lagarto branco muito inofensivo) passou sobre o nosso seio e envenenou o nosso leite; vê o estado de teus filhos e cura-os para que Deus te abençoe.

“─ Então és médico? perguntei ao meu companheiro.

“─ Não, respondeu ele, mas tenho a bênção do sangue nas mãos, e quem quer que a tenha como eu, pode curar essa doença. É um dom natural de todo homem cujo braço cortou algumas cabeças. ─ Vamos, mulheres, dai o que é preciso.

“E logo uma das mães apresenta ao doutor uma galinha branca, sete ovos e três moedas de vinte paras; depois se agacha aos seus pés, elevando o pequeno paciente acima da cabeça. Gravemente Hassan tira da cintura o isqueiro e sua pederneira, como se quisesse acender um cachimbo. Bismillah! (Em nome de Deus!) diz ele, e se põe a fazer saltar numerosas centelhas de sílex sobre a criança doente, enquanto recitava o sourat-el-fatéha, o primeiro capítulo do Alcorão.

“Terminada a operação, chegou a vez do outro menino, mediante a mesma oferenda, e as mulheres partiram, contentes por haver beijado respeitosamente a mão que acabava de dar a saúde aos seus filhos.

“Parece que o meu rosto traía a minha incredulidade, porque o caïd Hassan, reunindo os honorários de sua cura maravilhosa, gritou às clientes: “Não deixeis de vir em sete dias me apresentar vossos filhos na skifa do consulado.” (A skifa é o vestíbulo externo, a sala de espera nas grandes casas).

“Com efeito, uma semana depois, as criaturinhas me foram mostradas. Uma estava completamente curada, a outra tinha apenas algumas cicatrizes de aparência muito satisfatória, indicando uma cura muito próxima. Fiquei estupefato, mas não convencido. Contudo, depois de mais de vinte experiências semelhantes, fui forçado a crer na incrível virtude das mãos abençoadas pelo sangue.”

Há criaturas que nem os fatos mais patentes podem convencer. Todavia, é preciso convir que, neste caso, é permitido logicamente não acreditar na eficácia da bênção do sangue, obtida sobretudo em tais condições, nem na das faíscas do isqueiro. Entretanto não deixa de existir o fato material da cura. Se ela não tem esta causa, deve ter uma outra; se vinte experiências semelhantes, do conhecimento do narrador, vieram confirmá-lo, essa causa não pode ser fortuita e deve provir de uma lei. Ora, essa lei não é senão a faculdade curadora de que aquele homem é dotado. Na sua ignorância do princípio, atribuía a faculdade ao que chamava a bênção do sangue, crença em relação com os costumes do país onde a vida de um homem nada vale. O isqueiro e as outras fórmulas são acessórios que só têm valor em sua imaginação, e que servem, sem dúvida, pela importância a elas atribuída, para lhe dar mais confiança em si próprio e, em consequência, para aumentar o seu poder fluídico.

Este fato levanta naturalmente uma questão de princípio em relação ao dom da faculdade de curar, à qual responde a comunicação seguinte, dada a respeito.

(Sociedade de Paris, 23 de fevereiro de 1867 - Médium, Sr. Desliens) Por vezes se admiram, com razão aparente, de encontrar em indivíduos indignos, faculdades notavelmente desenvolvidas, que aparentemente deveriam ser, de preferência, apanágio de homens virtuosos e desprovidos de preconceitos. Contudo, a história dos séculos passados apresenta, quase que a cada página, exemplos de mediunidade notáveis possuídas por Espíritos inferiores e impuros ou por fanáticos sem raciocínio! Qual pode ser o motivo de tal anomalia?

Entretanto aí nada há que possa causar admiração, e um estudo suficientemente sério e refletido do problema dará a sua chave.

Quando fenômenos excepcionais pertencentes à ordem extracorpórea são produzidos, o que acontece de fato? ─ É que individualidades encarnadas servem de órgãos de transmissão da manifestação. Elas são instrumentos movidos por uma vontade exterior. Ora, perguntariam a um simples instrumento o que se exigiria do artista que o põe em vibração?... Se é evidente que um bom piano é preferível a um defeituoso, não é menos certo que, num como no outro, distinguir-se-á a execução do artista da execução de um aprendiz. ─ Se, pois, o Espírito que intervém na cura encontra um bom instrumento, dele se servirá com boa vontade; se não, utilizará o que tiver à mão, por mais defeituoso que seja.

É preciso considerar, também, que no exercício da faculdade mediúnica, e em particular no exercício da mediunidade curadora, podem apresentar-se dois casos distintos: ou o médium pode ser curador por sua vontade, ou pode não ser senão o agente mais ou menos passivo de uma força motriz extracorpórea.

No primeiro caso, só poderá agir se suas virtudes e sua força moral lho permitirem. Será um exemplo na sua conduta privada ou pública, um modelo, um missionário que veio para servir de guia e de sinal de ligação para os homens de boa vontade. O Cristo é a personificação suprema do curador.

Quanto àquele que é apenas médium, sendo instrumento, ele pode ser mais ou menos defeituoso, e os atos que se operam por seu intermédio de modo algum o impedem de ser imperfeito, egoísta, orgulhoso e fanático. Membro da grande família humana, tanto quanto a maioria, ele partilha de todas as suas fraquezas.

“Lembrai-vos destas palavras de Jesus: “Não são os que têm saúde que precisam de médico.” Então, é preciso ver um sinal de bondade da Providência nessas faculdades que se desenvolvem em meios e em pessoas imperfeitas. É um meio de lhes dar a fé que mais cedo ou mais tarde conduzirá ao bem; se não for hoje, será amanhã; são sementes que não estão perdidas, porque vós, espíritas, sabeis que nada se perde para o Espírito.

Se não é raro, em naturezas moral e fisicamente mais abruptas, encontrar faculdades transcendentes, isto se deve a que essas individualidades, tendo pouca ou nenhuma vontade pessoal, limitam-se a deixar agir a influência que as dirige. Poderse-ia dizer que agem por instinto, ao passo que uma inteligência mais desenvolvida, querendo entender a causa que a põe em movimento, por vezes colocar-se-ia em condições que não permitiriam uma realização tão fácil dos desígnios providenciais.

Por mais bizarros e inexplicáveis que sejam os efeitos que se produzem aos vossos olhos, estudai-os atentamente, antes de considerar um só como infração às leis eternas do Mestre Supremo! Não há um só que não ateste a sua existência, a sua justiça e a sua sabedoria eternas, e se a aparência disser o contrário, crede que será apenas uma aparência que desaparecerá para dar lugar à realidade, com um estudo mais aprofundado das leis conhecidas e o conhecimento daquelas cuja descoberta está reservada ao futuro.

CLÉLIE DUPLANTIER.

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