Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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Carta de um defunto a seu amigo na Terra (Sobre o Estado dos Espíritos desencarnados)

Enfim, meu bem-amado, me é possível satisfazer, embora apenas em parte, o meu e o teu desejo de informar-te alguma coisa acerca do meu estado atual. Desta vez não te posso dar senão pouquíssimos detalhes. No futuro, tudo dependerá do uso que fizeres de minhas comunicações.

Sei que o desejo que experimentas de ter noções sobre mim, como em geral sobre o estado de todos os Espíritos desencarnados, é muito grande, mas não ultrapassa o meu de te ensinar o que é possível revelar. O poder de amar daquele que amou no mundo material, aumenta inexprimivelmente quando ele se torna cidadão do mundo material. Com o amor também aumenta o desejo de informar àqueles que ele conheceu, aquilo que ele pode, o que lhe é permitido transmitir.

Devo começar por explicar-te, meu bem-amado, a ti que amo a cada dia mais, por qual meio me é possível escrever-te, sem poder, ao mesmo tempo, tocar o papel e conduzir a pena, e como te posso falar numa língua inteiramente terrestre e humana que em meu estado habitual eu não compreendo.

Esta indicação deve servir-te apenas de traço de luz, para poderes compreender como deves encarar o nosso estado presente.

Imagina meu estado atual diferente do precedente, mais ou menos como o estado da borboleta voejando no ar difere de seu estado de crisálida. Eu sou justamente essa crisálida transfigurada e emancipada, já tendo sofrido duas metamorfoses. Exatamente como a borboleta volita em redor das flores, nós voejamos muitas vezes em torno da cabeça dos bons, mas não sempre. Uma luz invisível para vós, mortais, ou pelo menos visível apenas para bem poucos dentre vós, irradia ou brilha docemente ao redor da cabeça de todo homem bom, amante e religioso. A ideia da auréola com a qual cercam a cabeça dos santos, é essencialmente verdadeira e racional. Levando-se em conta que todo ser bemaventurado só o é pela luz, quando essa luz se compatibiliza com a nossa, ela o atrai para si, conforme o grau de sua claridade compatível com a nossa. Nenhum Espírito impuro ousa e pode aproximar-se dessa santa luz. Fixando-nos nessa luz, acima da cabeça do homem bom e piedoso, podemos ler incontinenti em seu espírito. Vemolo tal qual ele é em realidade. Cada raio que dele sai é para nós uma palavra, por vezes todo um discurso; respondemos aos seus pensamentos. Ele ignora que somos nós que respondemos. Nele excitamos ideias que, sem a nossa ação, ele jamais teria estado em condições de conceber, embora a disposição e a aptidão para recebê-las sejam inatas em sua alma.

O homem digno de receber a luz torna-se, assim, um órgão útil e muito proveitoso para o Espírito simpático que deseja transmitir-lhe as suas luzes.

Encontrei um Espírito, ou melhor, um homem acessível à luz, do qual pude aproximar-me, e é por seu órgão que te falo. Sem sua intermediação ter-me-ia sido impossível comunicar-me contigo humanamente, verbalmente, palpavelmente, muma palavra, escrever-te.

Desta maneira, pois, recebes uma carta anônima da parte de um homem que não conheces, mas que nutre em si uma forte tendência para as matérias ocultas e espirituais. Eu plano acima dele; posto-me sobre ele, mais ou menos como o mais divino de todos os Espíritos se postou sobre o mais divino de todos os homens, após o seu batismo; suscito-lhe ideias; ele as transcreve sob a minha intuição, sob a minha direção, por efeito da minha radiação. Por um leve toque, faço vibrarem as cordas de sua alma de maneira conforme à sua individualidade e à minha. Ele escreve o que desejo fazê-lo escrever; escrevo por seu intermédio; minhas ideias tornam-se as suas. Ele se sente feliz escrevendo. Torna-se mais livre, mais animado, mais rico em ideias. Parece-lhe que vive e plana num elemento mais alegre, mais claro. Ele anda devagar, como um amigo que conduz um amigo pela mão, e é desta maneira que de mim recebes uma carta. Aquele que escreve supõe-se livre e o é muito realmente.

Ele não sofre nenhuma violência; é livre como o são dois amigos que, andando

de braço dado, entretanto se conduzem reciprocamente.

Tu deves sentir que meu Espírito se acha em relação direta com o teu; concebes o que te digo; entendes os meus mais íntimos pensamentos.

É bastante por esta vez. O dia em que ditei esta carta chama-se, entre vós, 15 de setembro de 1798.

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