O Céu e o Inferno ou a justiça divina segundo o Espiritismo

Allan Kardec

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9. Esta doutrina suscita várias objeções.

1.º — Se Satã e os demônios eram anjos, é porque eram perfeitos; como, sendo perfeitos, puderam falhar e ignorar a esse ponto a autoridade de Deus, na presença do qual se encontravam? Conceber-se-ia ainda que, se não tivessem chegado a esse grau eminente senão gradualmente e depois de terem passado pelo caminho da imperfeição, pudessem ter tido um retorno deplorável; mas o que torna a coisa mais incompreensível é que no-los representam como tendo sido criados perfeitos. A consequência dessa teoria é esta: Deus quisera criar neles seres perfeitos, visto que os cumulara de todos os dons, e enganou-se; portanto, segundo a Igreja, Deus não é infalível.*

2.º — Visto que nem a Igreja nem os anais da história santa se explicam sobre a causa da revolta dos anjos contra Deus, que somente parece certo que ela esteve na recusa deles de reconhecer a missão futura do Cristo, que valor pode ter o quadro tão preciso e tão detalhado da cena que ocorreu naquela ocasião? De que fonte foram tiradas as palavras tão nítidas relatadas como tendo sido pronunciadas, e até os simples murmúrios? De duas coisas uma: ou a cena é verdadeira, ou não o é. Se é verdadeira, não há nenhuma incerteza, e então por que a Igreja não decide a questão? Se a Igreja e a história se calam, se a causa só parece certa, não é senão uma suposição, e a descrição da cena é uma obra de imaginação.**

3.º — As palavras atribuídas a Lúcifer acusam uma ignorância que é espantoso encontrar num arcanjo que, por sua própria natureza e no grau em que está colocado, não deve compartilhar, sobre a organização do universo, os erros e os preconceitos que os homens professaram até que a ciência tivesse vindo esclarecê-los. Como pode ele dizer: “Estabelecerei minha morada acima dos astros; dominarei as nuvens mais altas”? É sempre a antiga crença na terra como centro do mundo, no céu das nuvens que se estende até às estrelas, à região limitada das estrelas formando abóbada, e que a astronomia nos mostra disseminadas ao infinito, no espaço infinito. Como se sabe hoje que as nuvens não se estendem além de duas léguas da superfície da terra, para dizer que ele dominará as nuvens mais altas, e falar das montanhas, era preciso que a cena se passasse na superfície da terra, e que fosse aí a morada dos anjos; se essa morada é nas regiões superiores, era inútil dizer que ele se elevaria além das nuvens. Fazer os anjos terem uma linguagem marcada pela ignorância, é admitir que os homens, hoje, sabem mais do que os anjos. A Igreja sempre cometeu o erro de não levar em conta os progressos da ciência.


* Esta doutrina monstruosa é afirmada por Moisés, quando diz (Gênesis, cap. VI, v. 6 e 7): “Ele se arrependeu de ter feito o homem na terra. E, tocado de dor até ao fundo do coração, — ele disse: ‘Exterminarei da superfície da terra o homem que criei; exterminarei tudo, desde o homem até os animais, desde tudo o que rasteja sobre a terra até os pássaros do céu: pois eu me arrependo de tê-los feito.’”

Um Deus que se arrepende do que fez não é perfeito nem infalível: logo, não é Deus. São, no entanto, as palavras que a Igreja proclama como verdades santas. Também não se vê muito bem o que havia em comum entre os animais e a perversidade dos homens para merecerem seu extermínio.

** Encontra-se em Isaías, cap. XIV, v. 11 e seguintes: — “Teu orgulho foi precipitado nos infernos; teu corpo morto caiu por terra; tua cama será tua podridão, e tua vestimenta serão os vermes. — Como caíste do céu, Lúcifer, tu que parecias tão brilhante ao alvorecer? Como foste jogado na terra, tu que golpeavas as nações; — que dizias em teu coração: Subirei ao céu, estabelecerei meu trono acima dos astros de Deus, sentar-me-ei na montanha da aliança, nos flancos do Aquilão; colocar-me-ei acima das nuvens mais altas, e serei semelhante ao Altíssimo? — E no entanto foste precipitado dessa glória no inferno, até o mais profundo dos abismos. — Aqueles que te virem aproximar-se-ão de ti, e, depois de te terem encarado, dir-te-ão: Foi esse homem que apavorou a terra, que semeou o terror nos reinos, que fez do mundo um deserto, que destruiu suas cidades, e que manteve acorrentados aqueles que fizera prisioneiros?”

Estas palavras do profeta não são relativas à revolta dos anjos, mas uma alusão ao orgulho e à queda do rei da Babilônia, que mantinha os judeus em cativeiro, assim como provam os últimos versículos. O rei da Babilônia é designado, por alegoria, sob o nome de Lúcifer, mas não é aí feita nenhuma menção à cena descrita anteriormente. Estas palavras são as do rei que dizia em seu coração, e se colocava, por seu orgulho, acima de Deus, cujo povo mantinha cativo. A predição da libertação dos judeus, da ruína da Babilônia e da derrota dos assírios é, aliás, o assunto exclusivo deste capítulo.

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