Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1860

Allan Kardec

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Uma convulsionária

Tendo as circunstâncias permitido contato com a filha de uma das principais convulsionárias de Saint-Médard, foi possível recolher sobre essa espécie de seita algumas informações particulares. Assim, nada há de exagerado no que se relata sobre as torturas a que voluntariamente se submetiam os fanáticos. Sabe-se que uma das provas, denominadas grandes socorros, consistia em sofrer a crucificação e todos os sofrimentos da Paixão do Cristo. A pessoa de quem falamos, e que só faleceu em 1830, ainda tinha nas mãos os furos feitos pelos pregos que haviam servido para suspendê-la à cruz, e no lado as marcas dos golpes de lança que havia recebido. Ela escondia cuidadosamente esses estigmas do fanatismo, e sempre tinha evitado explicá-los aos filhos. É conhecida na história das convulsionárias sob um pseudônimo que calaremos, pelos motivos que revelaremos oportunamente. A conversa que segue ocorreu em presença de sua filha, que a desejou. Dela suprimiremos particularidades íntimas, que não interessariam aos estranhos e que foram, sobretudo para a filha, uma incontestável prova de identidade.

1. Evocação. ─ Há muito tempo desejo conversar convosco.


2. ─ Qual o motivo que vos levava a desejar conversar comigo? ─ Sei apreciar vossos trabalhos, a despeito do que possais pensar de minhas crenças.


3. ─ Vedes aqui a senhora sua filha? Foi sobretudo ela que quis conversar convosco, e ficaremos encantados de aproveitar o ensejo para nossa instrução. ─ Sim, uma mãe sempre vê seus filhos.


4. ─ Sois feliz como Espírito? ─ Sim e não, porque poderia ter feito melhor. Mas Deus leva em conta a minha ignorância.


5. ─ Lembrai-vos perfeitamente da última existência? ─ Eu teria muita coisa a vos dizer, mas orai por mim, a fim de que isto me seja permitido.


6. ─ As torturas a que vos submetestes vos elevaram e tornaram mais feliz como Espírito? ─ Não me fizeram mal, mas não me ajudaram a avançar como inteligência.


7. ─ Peço-vos a fineza de ser precisa. Pergunto se aquilo vos foi levado à conta de mérito? ─ Direi que tendes um item no Livro dos Espíritos que dá a resposta geral. Quanto a mim, eu era uma pobre fanática.


NOTA: Alusão ao item 726 do Livro dos Espíritos, sobre os sofrimentos voluntários.


8. ─ Esse item diz que o mérito dos sofrimentos voluntários está na razão da utilidade resultante para o próximo. Ora, os das convulsionárias não tinham, segundo creio, senão um fim puramente pessoal. ─ Era geralmente pessoal, e se jamais falei disso a meus filhos, foi porque compreendia vagamente que não era aquele o verdadeiro caminho.


OBSERVAÇÃO: Aqui o Espírito da mãe responde por antecipação ao pensamento da filha, que desejava perguntar por que, em vida, tinha evitado falar disso aos filhos.


9. ─ Qual a causa do estado de crise das convulsionárias? ─ Disposição natural e superexcitação fanática. Jamais teria querido que meus filhos fossem arrastados para essa rampa fatal, que hoje ainda melhor reconheço como tal. Respondendo espontaneamente a uma reflexão de sua filha que, entretanto, não havia formulado a pergunta, acrescenta: ─ Eu não tinha educação, mas intuição de muitas existências anteriores.


10. ─ Dentre os fenômenos produzidos entre as convulsionárias, alguns têm analogia com certos efeitos sonambúlicos, como, por exemplo, a penetração do pensamento, a visão à distância, a intuição das línguas? O magnetismo representava nisso um algum papel? ─ Muito, e vários sacerdotes magnetizavam, sem o consentimento das pessoas.


11. ─ De onde provinham as cicatrizes que tínheis nas mãos e noutras partes do corpo? ─ Pobres troféus de nossas vitórias, que a ninguém serviram, e que por vezes excitaram paixões. Deveis compreender-me.


OBSERVAÇÃO: Parece que nas práticas das convulsionárias passavam-se coisas de grande imoralidade que haviam revoltado o coração honesto dessa senhora, e mais tarde, quando acalmada a febre fanática, fizeram-na tomar aversão por tudo quanto lhe trouxesse recordações do passado. É sem dúvida uma das razões que a levavam a não falar do assunto a seus filhos.


12. ─ Realmente eram operadas curas sobre o túmulo do diácono Pâris? ─ Oh! Que pergunta! Bem sabeis que não, ou pouca coisa, sobretudo para vós.


13. ─ Depois de vossa morte, vistes Pâris? ─ Desde que ingressei no mundo dos Espíritos, não me ocupei dele, porque o culpo por meu erro.


14. ─ Como o consideráveis quando viva? ─ Como um enviado de Deus, e é por isto que lhe censuro o mal que fez em nome de Deus.


15. ─ Mas não é ele inocente pelas tolices praticadas em seu nome após a sua morte? ─ Não, porque ele próprio não acreditava no que ensinava. Não o compreendi, quando viva, como o compreendo agora.


16. ─ É certo que o Espírito dele tenha ficado indiferente, como ele disse, às manifestações ocorridas em sua sepultura? ─ Ele vos enganou.


17. ─ Assim, ele excitava o zelo fanático? ─ Sim, e ainda o faz.


18. ─ Quais as vossas ocupações como Espírito? ─ Procuro instruir-me, e é por isso que disse que desejava vir entre vós.


19. ─ Em que lugar estais, aqui? ─ Perto do médium, com a mão sobre o seu braço ou sobre o seu ombro.


20. ─ Se pudéssemos ver-vos, sob que forma seríeis vista? ─ Minha filha veria sua mãe, como era quando viva. Quanto a vós, me veríeis em Espírito; a palavra não vo-la posso dizer.


21. ─ Tende a bondade de vos explicar. O que quereis dar a entender quando dizeis que eu vos veria em Espírito? ─ Uma forma humana transparente, conforme a depuração do Espírito.


22. ─ Dissestes haver tido outras existências. Tendes lembrança delas? ─ Sim, eu vo-lo disse, e por minhas respostas, deveis ver que tive muitas.


23. ─ Poderíeis dizer qual a que precedeu a última, que conhecemos? ─ Não esta noite e não por este médium. Pelo senhor, se quiserdes.


NOTA: Ela designa um dos assistentes, que começava a escrever como médium e explica sua simpatia por ele, porque, diz ela, o conheceu em sua precedente existência.


24. ─ Ficaríeis contrariada se eu publicasse esta conversa na Revista? ─ Não. É necessário que o mal seja divulgado; mas não me chameis... (seu nome de guerra). Detesto esse nome. Designai-me, se quiserdes, como grande mestra.


OBSERVAÇÃO: É para condescender com o seu desejo que não citamos o nome sob o qual era conhecida, e que lhe traz penosas recordações.


25. ─ Nós vos agradecemos por terdes vindo e pelas explicações que nos destes. ─ Sou eu que vos agradeço por terdes proporcionado a minha filha a ocasião de encontrar sua mãe, e a mim, a de poder fazer um pouco de bem.

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