Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Sermões contra o Espiritismo

Uma carta de Lyon, de 7 de dezembro de 1862, contém a passagem seguinte, que uma testemunha ocular confirmou-nos, verbalmente:

“Tivemos aqui o bispo do Texas, na América, que pregou, terça-feira, 2 de dezembro, à 8 horas da noite, na igreja de Saint-Nizier, perante um auditório de cerca de duas mil pessoas, entre as quais encontrava-se grande número de espíritas. Ah! Ele não parece bem instruído em nossa doutrina. Pode julgar-se por este resumo: ‘Os espíritas não admitem o inferno nem as preces nas igrejas. Eles se fecham em seus quartos e aí oram a Deus, quem sabe que preces!... Só há duas espécies de Espíritos: os perfeitos e os ladrões; os assassinos e os canalhas... Eu venho da América, onde essas infâmias começaram. Ora! Eu vos posso garantir que há dois anos naquele país ninguém mais se ocupa disso. Disseram-me que aqui, nesta cidade de Lyon, tão conhecida por sua piedade, havia muitos espíritas. Isto não pode ser. Não acredito. Estou certo, caros irmãos e caras irmãs, que entre vós não há um só médium nem uma só médium, porque, vede, os Espíritos não admitem casamento nem batismo, e todos os espíritas se separaram de suas esposas etc. etc...’

“Estas poucas frases dão ideia do resto. Que teria dito o orador se soubesse que um quarto da assistência era de espíritas? Quanto à sua eloquência, só uma coisa posso dizer: é que em certos momentos parecia um frenesi; parecia perder o fio das ideias e não sabia o que queria dizer. Se eu não temesse servir-me de uma expressão irreverente, diria que ele chafurdava. Creio realmente que ele era levado por alguns Espíritos a dizer tais absurdos e de tal maneira que, eu vos asseguro, a gente não se apercebia de estar num lugar santo. Então, todo mundo ria. Alguns de seus partidários saíram na frente, para observar o efeito produzido pelo sermão, mas não devem ter ficado muito satisfeitos porque, uma vez lá fora, cada um ria e dizia o que pensava. Vários de seus amigos deploravam os desvios por ele cometidos e compreendiam que não tinha alcançado o objetivo. Com efeito, não poderia proceder melhor para recrutar adeptos, e foi o que aconteceu na sessão posterior. Uma senhora, que se achava ao lado de uma boníssima espírita minha conhecida, disse-lhe: ‘Mas o que é esse Espiritismo e o que são esses médiuns de quem se fala tanto e contra os quais esses senhores estão tão furiosos?’ A coisa lhe foi explicada e ela disse: ‘Oh! Ao chegar em casa, vou adquirir livros e tentar escrever.’

“Posso assegurar-vos que se os espíritas são tão numerosos em Lyon é graças a alguns sermões desse gênero. Lembrai-vos que há três anos, quando aqui contávamos apenas algumas centenas de espíritas, eu vos escrevi, a propósito de uma pregação furibunda contra a doutrina, que teve excelente efeito: ‘Mais alguns sermões como este e em um ano decuplicará o número de adeptos’. Então! Hoje está centuplicado, graças, também, aos ignóbeis e mentirosos ataques de alguns órgãos da imprensa.

“Todo mundo, e até o simples operário que sob suas vestes grosseiras tem mais bom-senso do que se julga, diz que não se ataca com tanta fúria uma coisa que não vale nada. Assim, quiseram ver por si mesmos e, ao reconhecerem a falsidade de certas afirmações, que denotavam ignorância ou malevolência, a crítica ficou desacreditada e, em vez de afastar as pessoas do Espiritismo, deu-lhe partidários.

“Dar-se-á o mesmo, esperamo-lo, com o sermão do bispo do Texas, cuja maior infelicidade foi a de dizer que ‘todos os espíritas estão separados das esposas’, quando temos aqui, aos nossos olhos, numerosos exemplos de casais outrora separados e que o Espiritismo trouxe à união e à concórdia.

“Cada um se diz, naturalmente, que se os adversários do Espiritismo lhe atribuem ensinos e resultados cuja falsidade é demonstrada pelos fatos e pela leitura dos livros, que dizem o contrário, nada prova a verdade daquelas críticas. Creio que se os espíritas lioneses não temessem faltar com o respeito ao bispo do Texas, terlhe-iam mandado uma carta de agradecimentos. Mas o Espiritismo nos torna caridosos, até para com os inimigos”.

Outra carta, de testemunha ocular, contém a seguinte passagem:

“O orador de Saint-Nizier partiu do dado que o Espiritismo já fez sua época nos Estados Unidos e que há dois anos não se fala mais nele. Era, pois, em sua opinião, uma questão de moda. Os fenômenos não tinham consistência e não mereciam ser estudados. Ele tinha procurado ver e nada vira. Contudo, assinalava a nova doutrina como atentatória aos laços de família, à propriedade, à constituição da Sociedade e a denunciava como tal às autoridades competentes.

“Os adversários esperavam um efeito mais chocante e não uma simples negação apresentada de maneira tão ridícula, pois não ignoram o que se passa na cidade, a marcha do progresso e a natureza das manifestações. A questão foi retomada no domingo, dia 14, em Saint-Jean, desta vez tratada um pouco melhor.

“O orador de Saint-Nizier tinha negado os fenômenos. O de Saint-Jean reconheceu-os e afirmou: ‘Ouvem-se batidas nas paredes; no ar, vozes misteriosas; na verdade são Espíritos, mas que Espíritos? Não podem ser bons, pois os bons são dóceis e submissos às ordens de Deus, que proibiu a evocação dos Espíritos. Portanto, os que vêm só podem ser maus.

“Havia umas três mil pessoas em Saint-Jean. Entre essas, pelo menos trezentas irão à descoberta.

“O que por certo contribuirá para fazer refletirem as criaturas honestas ou inteligentes que compunham o auditório, são as singulares afirmações do orador ─ digo singulares por polidez. ─ ‘O Espiritismo’, disse ele, ‘vem destruir a família, aviltar a mulher, pregar o suicídio, o adultério e o aborto, preconizar o comunismo, dissolver a Sociedade.’ Depois convidou os paroquianos que por acaso tivessem livros espíritas, que os trouxessem a esses senhores, a fim de serem queimados, como São Paulo havia feito em Éfeso com obras heréticas.

“Não sei se aqueles senhores encontrarão muitas pessoas bastante zelosas para irem com dinheiro na mão esvaziar nossas livrarias. Alguns espíritas estavam furiosos; a maioria se alegrava, por compreender que era um grande dia.

“Assim, do alto da segunda cátedra da França, acabam de proclamar que os fenômenos são verdadeiros. Toda a questão, pois, se reduz a saber se são bons ou maus Espíritos e se só aos maus Deus permite que venham”.

O orador do Saint-Jean afirma que só podem ser os maus. Este outro modificou um pouco a solução.

Escrevem-nos de Angoulême que quinta-feira, 5 de dezembro último, um pregador assim se exprimia em seu sermão: “Nós todos sabíamos que se podiam evocar os Espíritos, e isto desde muito tempo, mas a Igreja deve fazê-lo. Aos outros homens não é permitido tentar corresponder-se com eles por meios físicos. Para mim é uma heresia.” O efeito produzido foi inteiramente contrário ao esperado.

Assim, é evidente que os bons e maus podem comunicar-se, porque se só os maus tivessem tal poder, não é provável que a Igreja se reservasse o privilégio de chamá-los.

Duvidamos que dois sermões pregados em Bordeaux, no mês de outubro último, tenham servido melhor à causa dos nossos antagonistas. Eis a sua análise, feita por um ouvinte. Os espíritas poderão ver se, sob esse disfarce, reconhecem a sua doutrina e se os argumentos que lhes opõem são de molde a lhes abalar a fé. Quanto a nós, repetimos o que já dissemos alhures: Enquanto não atacarem o Espiritismo com melhores armas, ele nada deverá temer.

“Lamentarei sempre, diz o narrador, não ter ouvido o primeiro desses sermões, na Capela Margaux, a 15 de outubro último, se estou bem informado. Conforme me disseram testemunhas fidedignas, a tese desenvolvida foi a seguinte: ‘Os Espíritos podem comunicar-se com os homens. Os bons só se comunicam na Igreja. Todos quantos se manifestam fora da Igreja são maus, porque fora da Igreja não há salvação. ─ Os médiuns são infelizes que fizeram pacto com o diabo e dele obtêm, ao preço de sua alma, que para ele venderam, manifestações de toda sorte, fossem elas extraordinárias, para não dizer miraculosas.’

“Passo em silêncio outras citações ainda mais estranhas. Não as tendo ouvido diretamente, temo que hajam exagerado.

“No domingo seguinte, 19 de outubro, tive a sorte de ouvir o seguinte sermão. Procurei saber o nome do pregador e me responderam que era o Padre Lapeyre, da Companhia de Jesus.

“O Padre Lapeyre faz a crítica de O Livro dos Espíritos e, por certo, era necessária enorme dose de boa vontade para reconhecer essa obra admirável nas teorias desprovidas de bom-senso que o pregador pretendia ali ter achado. Limitarme-ei a assinalar os pontos que mais me chocaram, preferindo ficar abaixo da verdade do que atribuir ao nosso adversário o que ele não teria dito ou eu teria mal compreendido.

“Segundo o Padre Lapeyre, ‘O Livro dos Espíritos prega o comunismo; a partilha dos bens; o divórcio; a igualdade entre todos os homens, e sobretudo entre o homem e a mulher; a igualdade entre o homem e seu Deus, porque o homem, levado por esse orgulho que perdeu os anjos não aspira a nada menos que tornar-se semelhante a Jesus Cristo. Ele arrasta os homens ao materialismo e aos prazeres sensuais, porque o trabalho de aperfeiçoamento pode fazer-se sem o concurso de Deus, malgrado seu, por efeito dessa força que quer que tudo se aperfeiçoe gradualmente, e preconiza a metempsicose, essa loucura dos Antigos, etc.’

“Passando, a seguir, à rapidez com que se propagam as ideias novas, ele constata com horror quanto é hábil e astuto o diabo, que as ditou; quanto soube elaborá-las com arte, de modo a fazê-las vibrar com força nos corações pervertidos dos filhos deste século de incredulidade e heresias. Então exclama: ‘Este século ama tanto à liberdade! e vêm lhe oferecer o livre exame, o livre-arbítrio, a liberdade de consciência! Este século ama tanto a igualdade! e lhe mostram o homem à altura de Deus! Ama tanto a luz! e de uma penada rasga-se o véu que ocultava os santos mistérios’.

“Depois, ele ataca a questão das penas eternas, e sobre esse assunto palpitante de emoções, teve magníficas tiradas oratórias: ‘Acreditaríeis, meus caros irmãos; acreditaríeis até onde chegou a impudência desses filósofos novos, que pensam fazer desmoronar, ao peso dos sofismas, a santa religião do Cristo! Oh! os infelizes! dizem que não há inferno! não há purgatório! Para eles não mais relações benditas que ligam os vivos às almas daqueles que perderam! Não mais o santo sacrifício da missa! E por que a celebrariam? Essas almas não se purificarão por si mesmas e sem nenhum trabalho, pela eficácia dessa força irresistível que incessantemente as atrai para a perfeição? E sabeis quais são as autoridades que vêm proclamar essas doutrinas ímpias, marcadas na fronte pelo sinal indelével desse inferno que queriam aniquilar? Ah! meus irmãos! São as mais sólidas colunas da Igreja: São Paulo, Santo Agostinho, São Lucas, São Vicente de Paulo, Bossuet, Fénelon, Lamennais, e todos esses homens de elite, santos homens que, durante a vida, combateram pelo estabelecimento das verdades inamolgáveis sobre as quais a Igreja construiu seus alicerces, e que hoje vêm declarar que seus Espíritos, desprendidos da matéria, estando mais clarividentes, se aperceberam que suas opiniões estavam erradas, e que se deve crer no contrário.’

“Passando depois à questão que o autor da Carta de um Católico dirige a um Espírito para saber se, praticando o Espiritismo, ele é herético, o pregador acrescenta: ‘Eis a resposta, meus irmãos. Ela é curiosa, e o que é mais curioso, o que mostra de maneira mais evidente que o diabo, a despeito de sua astúcia e habilidade, deixa sempre aparecerem as suas unhas, é o nome do Espírito que deu essa resposta. Eu vo-lo direi daqui há pouco.’

“Segue a citação dessa resposta, que termina assim: ‘Estás de acordo com a Igreja em todas as verdades que te fortalecem no bem, que aumentam em tua alma o amor a Deus e o devotamento aos teus irmãos? Sim; pois bem: tu és católico.’ E acrescenta: ‘Assinado... Zenon!... Zenon! Um filósofo grego, um pagão, um idólatra que do fundo do inferno onde se queima há vinte séculos vem nos dizer que se pode ser católico e não crer nesse inferno que o tortura e que espera a todos os que, como ele, não morrerem humildes e submissos no seio da santa Igreja... Mas, insensatos e cegos que sois! Com toda a vossa filosofia, não tereis senão esta prova, esta única prova que a doutrina que proclamais emana do demônio, que será mil vezes suficiente!’

“Depois de longos rodeios sobre esta questão e sobre o privilégio exclusivo da Igreja de expulsar os demônios, acrescenta:

“‘Pobres insensatos que vos divertis em falar com os Espíritos e pretendeis sobre eles exercer qualquer influência! Não temeis que, como aquele de que fala São Lucas, esses Espíritos batedores e turbulentos ─ e eles são bem classificados, meus irmãos ─ não vos perguntem também: E vós quem sois? Quem sois para virdes perturbar-nos? Credes impunemente submeter-nos aos vossos caprichos sacrílegos? E que, tomando as cadeiras e as mesas que fazeis girar, não se apoderem de vós, como se apoderaram do filho de Sceva, e não vos maltratem a tal ponto que sejais forçados a fugir, nus e feridos, e reconhecendo demasiadamente tarde toda a abominação que há em brincar com os mortos?

“‘Diante desses fatos tão patentes e que falam tão alto, que nos resta fazer? Que temos a dizer? Ah! meus caros irmãos! Guardai-vos cuidadosamente do contágio. Repeli com horror todas as tentativas que os maus não cessarão de fazer para vos arrastar com eles ao abismo. Mas, ah! Já é muito tarde para fazer tais recomendações. O mal já fez rápidos progressos. Esses livros infames, ditados pelo príncipe das trevas, a fim de atrair para o seu reino uma multidão de pobres ignorantes, de tal modo se espalharam que se, como outrora em Éfeso, se estimasse o preço dos que circulam em Bordeaux, tenho certeza que ultrapassaria a soma de cinquenta mil denários de prata (170.000 francos, em nossa moeda - repetição da citação feita em outra parte do sermão). E eu não ficaria admirado se entre os numerosos fiéis que me escutam não haja alguns que já foram arrastados à sua leitura. A estes só podemos dizer: Depressa! Aproximai-vos do tribunal das penitências. Depressa! Vinde abrir os vossos corações aos guias espirituais. Cheios de doçura e bondade e seguindo em todos os pontos o magnífico exemplo de São Paulo, apressar-nos-emos a vos dar a absolvição. Mas, como ele, não vo-la daremos senão com a condição expressa de nos trazerdes esses livros de magia que quase vos perderam. E que faremos desses livros, caros irmãos? Sim, o que faremos? Como São Paulo, faremos uma montanha em praça pública e nós mesmos meteremos fogo!’

Faremos apenas uma ligeira observação sobre esse sermão: é que o autor se engana quanto à data e que talvez, novo Epimênides, ele dormiu desde o século quatorze.

Outro fato que se destaca é o rápido desenvolvimento do Espiritismo. Os adversários de uma outra escola também o constatam com desespero, tão grande é o amor que têm pela razão humana.

Lê-se no Moniteur de Moselle, de 7 de novembro de 1862: “O Espiritismo faz perigoso progresso. Invade a alta, a média e a baixa sociedade. Magistrados, médicos, gente séria, também caem nessa esparrela.” Nós achamos esta asserção repetida na maior parte das críticas atuais. É que em presença de um fato tão patente, era preciso vir do fundo do Texas para entrar num auditório onde se acham mais de mil espíritas que há dois anos não mais se ocupam de Espiritismo. Então, por que tanta cólera se o Espiritismo está morto e enterrado? Ao menos o Padre Lepeyre não tem ilusões. Seu horror até exagera a extensão desse pretenso mal, pois avalia numa soma fabulosa o valor dos livros espíritas espalhados só em Bordeaux. Em todo caso, é reconhecer um grande poder à ideia. Seja como for, em presença de todas essas afirmações, ninguém nos taxará de exagero quando falarmos do rápido progresso da doutrina. Que uns o atribuam ao poder do diabo, lutando com vantagem contra Deus, os outros a um acesso de loucura que invade todas as classes sociais, de tal modo que o círculo da gente de juízo vai se estreitando a tal ponto que em breve só haverá lugar para muito poucos; que uns e outros deplorem este estado de coisas, cada um do seu ponto de vista e se perguntem: “Para onde vamos, grande Deus?” É o seu direito. Disso resulta o fato que o Espiritismo vence todas as barreiras que lhe opõem. Assim, se é uma loucura, em breve só haverá loucos na Terra. O provérbio é conhecido. Se for obra do diabo, em breve só haverá danados, e se os que falam em nome de Deus não podem detê-lo, é que o diabo é mais forte do que Deus. Os espíritas são mais respeitosos para com a Divindade. Eles não admitem que haja um ser capaz de lutar com Deus em igualdade de condições, e sobretudo vencê-lo. Do contrário, os papéis estariam invertidos e o diabo tornar-se-ia o verdadeiro senhor do Universo.

Dizem os espíritas que sendo Deus soberano sem partilha, nada acontece no mundo sem sua permissão. Assim, se o Espiritismo se espalha com a rapidez do raio, façam o que fizerem para detê-lo, há que ver nisso um efeito da vontade de Deus. Ora, sendo Deus soberanamente justo e bom, ele não pode querer a perda de suas criaturas, nem permitir que sejam tentadas, com a certeza, em virtude de sua presciência, de que elas sucumbirão, para precipitá-las nos tormentos eternos.

Hoje, o dilema está posto. Ele está submetido à consciência de todos, e o futuro se encarrega da conclusão.

Se fazemos estas citações, é para mostrar a que argumentos estão reduzidos os adversários do Espiritismo para atacá-lo. Com efeito, é preciso estar mui carente de boas razões para recorrer a uma calúnia como a que o representa pregando a desunião da família, o adultério, o aborto, o comunismo, a derrubada da ordem social.

Temos necessidade de refutar estas asserções? Não. Basta remeter ao estudo da doutrina, à leitura do que ela ensina, que é o que se faz em toda a parte.

Quem poderá crer que pregamos o comunismo depois das instruções dadas arespeito no discurso publicado in extenso no relatório de nossa viagem em 1862? Quem poderá ver um excitamento à anarquia nas seguintes palavras, na mesma brochura, página 58: “Em todo caso, os espíritas devem ser os primeiros a dar exemplo de submissão às leis, no caso de serem convocados.”

Propor tais coisas numa região distante, onde o Espiritismo fosse desconhecido, onde não houvesse qualquer meio de controle, poderia produzir algum efeito. Mas afirmá-las do alto da cátedra da verdade, em meio a uma população espírita que aí dá incessantemente um desmentido por seus ensinos e seu exemplo, é inabilidade, e não se pode deixar de dizer que é necessário estar tomado por singular vertigem para iludir-se a tal ponto e não compreender que assim falando serve à causa do Espiritismo.

Seria erro, contudo, pensar seja esta a opinião de todos os membros do clero. Ao contrário, há muitos padres que não a esposam, e conhecemos muitos que deploram tais desvios, mais prejudiciais à religião que à Doutrina Espírita. São, pois, opiniões individuais, que não podem fazer lei, e o que prova que são apreciações pessoais é a contradição entre elas existente. Assim, ao passo que um declara que todos os Espíritos que se manifestam são necessariamente maus, pois desobedecem a Deus, comunicando-se, outro reconhece que há bons e maus, mas que só os bons vão à Igreja, e os maus, ao vulgo.

Um acusa o Espiritismo de aviltar a mulher, outro o censura por elevá-la ao nível dos direitos do homem. Um pretende que ele “arrasta os homens ao materialismo e aos prazeres sensuais” e outro, o Sr. Cura de Marouzeau, reconheceu que ele destrói o materialismo.

Em sua brochura, assim se exprime o Padre Marouzeau: “Na verdade, segundo os partidários das comunicações de além-túmulo, seria intenção deliberada do clero combater o Espiritismo a qualquer preço. Por que, então, supor que o clero tenha tão pouca inteligência e bom-senso e uma mente estúpida? Por que acreditar que a Igreja, que em todos os tempos deu tantas provas de prudência, de sabedoria e de alta inteligência para discernir o verdadeiro do falso, seria hoje incapaz de compreender o interesse de seus filhos? Por que condená-la sem ouvi-la? Se ela se recusa a reconhecer a vossa bandeira, é que a vossa bandeira não é a dela; ela tem cores que lhe são essencialmente hostis; é que, ao lado do bem que fazeis combatendo o horrível materialismo, ela vê um perigo real para as almas e para a Sociedade.” E, noutra passagem: “Concluamos de tudo isto que o Espiritismo deve limitar-se a combater o materialismo, a dar ao homem provas palpáveis de sua imortalidade por meio de manifestações de além-túmulo bem constatadas.”

De tudo isto ressalta um fato capital: é que todos esses senhores estão de acordo sobre a realidade das manifestações. Apenas cada um as aprecia a seu modo. Com efeito, negá-las seria negar a verdade das Escrituras, e os próprios fatos sobre os quais se apoia a maioria dos dogmas. Quanto à maneira de encarar a coisa, desde já, é possível constatar em que sentido se faz a unidade e se pronuncia a opinião pública, que também tem o seu veto. Ressalta ainda outro fato: é que a Doutrina Espírita abala profundamente as massas; que enquanto uns nela veem um fantasma terrível, outros veem o anjo da consolação e da libertação e uma nova era de progresso moral para a Humanidade.

Já que citamos a brochura do Padre Marouzeau, talvez nos perguntem por que ainda não a respondemos, se nos foi dirigida pessoalmente. Seu motivo pôde ser visto em nosso relatório de viagem, a propósito das refutações. Quando tratamos de uma questão, fazemo-lo do ponto de vista geral, abstraindo das pessoas que, aos nossos olhos, não passam de individualidades que se apegam ante as questões de princípios.

Falaremos do Sr. Marouzeau no devido tempo, como de alguns outros, quando examinarmos o conjunto das objeções. Para isto era útil esperar que cada um tivesse falado, grosso ou fino ─ e vimos acima alguns falaram grosso ─ para apreciar a força da oposição. Respostas especiais e individuais teriam sido prematuras e incessantemente repetidas.

A brochura do Sr. Marouzeau era um tiro de fuzil. Pedimos-lhe desculpas por colocá-lo na fila dos simples fuzileiros, mas sua modéstia cristã não ficará ofendida.

Protegido por uma porção de escudos, pareceu-nos conveniente deixar que descarregassem todas as armas, mesmo a artilharia pesada que, como se vê, acaba de entrar, a fim de julgar o seu poderio. Ora, até o presente, não temos que lamentar claros por ela abertos em nossas fileiras. Ao contrário, seus tiros ricochetearam contra ela.

Por outro lado, não era menos útil deixar desenhar-se a situação, e hão de convir que de dois anos para cá, o estado das coisas, longe de piorar, diariamente nos traz novas forças.

Responderemos, pois, quando julgarmos oportuno. Até agora não houve tempo perdido, pois sem isto temos ganho terreno incessantemente, e os próprios adversários se encarregam de facilitar nossa tarefa. Temos apenas que deixá-los agir.

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