Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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Conhecemos pessoalmente uma senhora, médium, dotada de notável faculdade tiptológica. Ela obtém facilmente e, o que é mais raro, quase constantemente, coisas de precisão, como nome de lugares e de pessoas em diversas línguas; datas e fatos particulares, em presença dos quais mais de uma vez a incredulidade foi confundida.

Essa senhora, inteiramente devotada à causa do Espiritismo, consagra todo o tempo disponível ao exercício de sua faculdade, com o objetivo de propaganda, e isto com um desinteresse tanto mais louvável quanto a sua posição de fortuna está mais perto da mediocridade. Como o Espiritismo é para ela uma coisa séria, ela sempre inicia com uma prece dita com o maior recolhimento, para solicitar a ajuda dos bons Espíritos e pedir a Deus que afaste os maus. Ela termina assim: “Se eu for tentada a abusar, seja no que for, da faculdade que a Deus aprouve conceder-se, peço-lhe que ma retire, em vez de permitir que ela seja desviada de seu objetivo providencial.”

Um dia um rico estrangeiro ─ de quem colhemos o fato ─ foi procurar essa senhora para lhe pedir que desse uma comunicação. Ele não tinha a menor noção do Espiritismo e ainda menos de crença. Pondo sua carteira sobre a mesa, disse-lhe: “Senhora, eis aqui dez mil francos que vos dou, se disserdes o nome da pessoa em quem estou pensando.” Isto basta para mostrar o nível de conhecimento que ele tinha da doutrina. Aquela senhora lhe fez observar, nesse particular, o que todo espírita verdadeiro faria em semelhante caso. Não obstante, ela tentou e nada obteve. Ora, logo depois da partida desse senhor ela recebeu, para outras pessoas, comunicações muito mais difíceis e complicadas do que aquela que ele lhe havia pedido.

Este fato deveria ser para esse senhor, conforme lhe dissemos, uma prova da sinceridade e da boa-fé da médium, porque os charlatães sempre têm recursos à sua disposição, quando se trata de ganhar dinheiro. Mas disso se deduzem vários outros ensinamentos de outra gravidade. Os Espíritos quiseram provar-lhe que não é com dinheiro que os fazem falar quando não querem; além disso provaram que se não tinham respondido à pergunta não era por impossibilidade da parte deles, porquanto depois disseram coisas mais difíceis a pessoas que nada ofereciam. A lição era maior ainda para o médium; era lhe demonstrar sua absoluta impotência sem o concurso deles e lhe ensinar a humildade, porque, se os Espíritos tivessem estado às suas ordens, se tivesse bastado a vontade dele para os fazê-los falar, era o caso de exercer o seu poder agora ou jamais.

Está aí uma prova manifesta do apoio ao que dissemos na Revista de fevereiro último, a propósito do Sr. Home, sobre a impossibilidade em que se acham os médiuns de contar com uma faculdade que lhes pode faltar no momento em que ela lhes seria necessária.

Aquele que possui um talento e que o explora está sempre certo de tê-lo à sua disposição, porque é inerente à sua pessoa, mas a mediunidade não é um talento; não existe senão pelo concurso de terceiros. Se esses terceiros se recusam, não há mais mediunidade. A aptidão pode subsistir, mas o seu exercício é anulado. Um médium sem a assistência dos Espíritos é como um violinista sem violino.

O senhor em questão admirou-se que, tendo vindo para se convencer, os Espíritos a isso não se tivessem prestado. A isto lhe respondemos que se ele pode ser convencido, sê-lo-á por outros meios, que nada lhe custarão. Os Espíritos não quiseram que ele pudesse dizer que tinha sido convencido a peso de ouro, porque se o dinheiro fosse necessário para convencer-se, como fariam os que não podem pagar?

É para que a crença possa penetrar nos mais humildes redutos que a mediunidade não é um privilégio. Ela se acha em toda parte, a fim de que todos, pobres e ricos, possam ter a consolação de comunicar-se com os parentes e amigos do além-túmulo.

Os Espíritos não quiseram que ele fosse convencido dessa maneira, porque o brilho que ele a isso tivesse dado teria falseado sua própria opinião e a de seus amigos quanto ao caráter essencialmente moral e religioso do Espiritismo. Eles não o quiseram no interesse do médium e dos médiuns em geral, cuja cupidez esse resultado teria superexcitado, porque eles se teriam dito que se haviam obtido êxito nessa circunstância, o mesmo aconteceria em outras.

Essa não foi a primeira vez que ofertas semelhantes foram feitas; que prêmios são oferecidos, mas sempre sem sucesso, tendo em vista que os Espíritos não se põem ao serviço e não se entregam a quem paga melhor.

Se essa senhora tivesse tido êxito, teria aceitado ou recusado? Ignoramos, porque dez mil francos são muito sedutores, sobretudo em certas posições. Em todo caso, a tentação foi grande. E quem sabe se a recusa não teria sido seguida de um pesar, que teria atenuado o mérito do feito?

Notemos que, em a sua prece, ela pede a Deus que lhe retire sua faculdade em vez de permitir que ela seja tentada a desviá-la de seu objetivo providencial. Então! Sua prece foi ouvida; a mediunidade lhe foi retirada para esse caso especial, a fim de lhe poupar o perigo da tentação e todas as consequências lamentáveis que a teriam seguido, primeiro para ela própria, e ainda pelo mau efeito que isto teria produzido.

Mas não é só contra a cupidez que os médiuns devem pôr-se em guarda. Como os há em todas as camadas da Sociedade, a maioria deles está acima desta tentação. Entretanto, há um perigo muito maior ainda, pois a ele todos estão expostos: é o orgulho, que põe a perder tão grande número. É contra esse escolho que as mais belas faculdades muitas vezes vêm quebrar-se. O desinteresse material não tem proveito se não for acompanhado pelo mais completo desinteresse moral. Humildade, devotamento, desinteresse e abnegação são as qualidades do médium amado pelos bons Espíritos.

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