Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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(Vide os ns. de Fevereiro e março, último)

O Sr. Dombre, de Marmande, enviou-nos o relato circunstanciado dessa cura já relatada aos leitores. Os detalhes nele contidos são do mais alto interesse, do duplo ponto de vista dos fatos e da instrução. Como se verá, é ao mesmo tempo um curso de ensino teórico e prático, um guia para casos análogos e uma fecunda fonte de observações para o estudo do mundo invisível em geral, nas suas relações com o mundo visível.

Diz o Sr. Dombre no seu informe: Eu fui advertido por um dos membros de nossa Sociedade Espírita, das crises violentas que todas as tardes, regularmente, há oito meses, sofria a chamada Tereza B.... Dia 11 de janeiro último, às quatro e meia da tarde, acompanhado do Sr. L..., médium, fui a uma casa vizinha à da doente, tentar testemunhar a crise que, conforme se dava todos os dias, devia ocorrer às cinco horas. Lá encontramos a jovem e sua mãe, conversando com vizinhos. A meia hora passou depressa. De repente vimos a moça levantar-se, abrir a porta, atravessar a rua e voltar para dentro de sua casa seguida por sua mãe que a tomou e a colocou vestida na cama. Começaram as convulsões. O corpo se dobrava; a cabeça tendia a tocar os calcanhares; o peito arfava. Numa palavra, era desagradável à vista. Entrando eu e o médium na casa vizinha, perguntamos ao Espírito de Louis David, guia espiritual do médium, se era uma obsessão ou um caso patológico. O Espírito respondeu:

“Pobre menina! Com efeito, ela se acha sob uma fatal influência, muito perigosa mesmo. Vinde em seu auxílio. Teimoso e mau, esse Espírito resistirá por muito tempo. Evitai, tanto quanto estiver ao vosso alcance, que ela seja tratada por medicamentos, que lhe prejudicariam o organismo. A causa é totalmente moral. Tentai evocar esse Espírito e moralizai-o com habilidade, que nós vos auxiliaremos. Que todas as almas sinceras que conheceis se reúnam para orar e combater a muito perniciosa influência desse Espírito malvado. Pobre pequena vítima do ciúme!

“LOUIS DAVID.”


Pergunta. ─ Que nome usaremos para chamar esse Espírito?

Resposta. ─ Júlio.

Evoquei-o imediatamente. O Espírito apresentou-se de modo violento, injuriando-nos, rasgando o papel e se recusando a responder a certas interpelações. Enquanto nos entretínhamos com o Espírito, o Sr. B..., médico, que tinha vindo examinar a crise, chegou junto de nós e disse com certo espanto:

─ É singular! De repente a menina parou de se torcer, e agora está estendida no leito, sem movimentos.

─ Isto não me admira, disse-lhe eu, porque o Espírito obsessor está junto de nós, neste momento.

Convenci o Sr. B... a voltar para a doente e continuamos a interpelar o Espírito, que em dado momento não mais respondeu. O guia do médium informou-nos que ele tinha ido continuar a sua obra, e recomendou-nos que não mais o evocássemos durante as crises, no interesse da menina, porque, voltando para ela com mais raiva, ele a torturava mais intensamente. No mesmo instante o médico entrou e nos informou que a crise recomeçara mais forte que nunca. Eu lhe fiz ler o aviso que acabáramos de receber, e ficamos chocados com as coincidências, que não deixavam dúvidas quanto à causa do mal.

A partir dessa tarde, e sob recomendação dos bons Espíritos que nos assistem nos trabalhos espíritas, reunimo-nos todas as noites, até a completa cura.

No mesmo dia 11 de janeiro recebemos a comunicação seguinte do Espírito protetor de nosso grupo:

“Guardiã vigilante da infância infeliz, venho associar-me aos vossos trabalhos, unir meus esforços aos vossos, para livrar esta mocinha das garras cruéis de um mau Espírito. O remédio está em vossas mãos. Velai, evocai e orai sem jamais vos cansardes, até a completa cura.

“PEQUENA CÁRITA.”


Esse Espírito, que toma o nome de Pequena Cárita, é o de uma jovem que conheci, falecida na flor da idade e que desde a mais tenra infância tinha dado provas do caráter mais angélico e de rara bondade.

A evocação do Espírito obsessor só nos valeu injúrias muito grosseiras e muito sujas, que é inútil repetir. Nossas exortações e nossas preces deslizavam sobre ele e não surtiram efeito.

“Amigos, não desanimeis! Ele se sente forte porque vos vê desgostosos com sua linguagem grosseira. Abstende-vos, por enquanto, de lhe pregar moral. Conversai com ele familiarmente e em tom amigável. Assim ganhareis a sua confiança e podereis mais tarde voltar a falar a sério. Amigos, perseverança!

“VOSSOS GUIAS.”


De acordo com esta recomendação, tornamo-nos leves nas interpelações, que ele respondeu no mesmo tom.

No dia seguinte, 12 de janeiro, a crise foi tão longa e violenta quanto as dos dias precedentes. Durou cerca de uma hora e meia. A menina erguia-se no leito, repelia o Espírito com força e lhe dizia: “Vai-te! Vai-te!” O quarto da doente estava cheio de gente. Alguns de nós nos achávamos ao pé do leito para observar atentamente as fases da crise.

Na reunião da noite recebemos a seguinte comunicação:

“Meus amigos, aconselho a que acompanheis, como tendes feito, passo a passo, esta obsessão que é para vós um fato novo. Vossas observações serão de grande auxílio, pois casos semelhantes poderão multiplicar-se, nos quais tereis que intervir.

“Esta obsessão, a princípio puramente física, creio que será seguida de alguma obsessão moral, mas sem perigo. Em breve vereis momentos de alegria em meio a essas torturas impostas por esse mau Espírito. Reconhecei aí a presença e a mão dos bons Espíritos. Se as torturas ainda persistirem, notareis, após a crise, a completa paralisação do corpo, e, após essa paralisação, uma alegria serena e um êxtase que aliviarão a dor da obsessão.

“Observai muito. Outros sintomas manifestar-se-ão e neles encontrareis novos assuntos de estudo.

“O Senhor disse aos seus anjos: Ide levar minha palavra aos filhos dos homens. Nós já tocamos a Terra com a vara, e a Terra gera prodígios. Curvai-vos, filhos! É a onipotência do Eterno que se vos manifesta.

“Amigos, vigiai e orai. Estamos junto de vós e do leito de sofrimentos para secar as lágrimas.

“PEQUENA CÁRITA.”


Evocado, o Espírito de Júlio foi menos intratável do que na véspera. Na verdade, respondemos às suas facécias com outras, o que lhe agradava. Antes de nos deixar, fizemo-lo prometer ser menos duro para com sua vítima. “Tratarei de me moderar”, disse ele; e como, por nossa vez, prometemos orar por ele, respondeu:

“Aceito, posto não conheça o valor dessa mercadoria.” Ao Espírito:

─ Considerando-se que não conheceis a prece, quereis conhecê-la e escrever

uma ditada por nós?

─ Eu quero muito.

Ditada por nós, ele escreveu a seguinte: “Ó meu Deus! Prometo abrir minha alma ao arrependimento. Fazei penetrar no meu coração um raio de amor por meus irmãos, única coisa que me pode purificar. E, como garantia desse desejo, aqui faço a promessa de...” (O fim da frase seria: Cessar minha obsessão, mas o Espírito não escreveu estas três palavras). Acrescentou: “Alto lá! Quereis arrastar-me sem me avisar. Cuidado! Não gosto de ciladas. Andais muito depressa.” E como quiséssemos saber a origem de sua vingança e de seu ciúme, ele respondeu: “Não me faleis jamais da menina. Assim só me afastaríeis de vós.”

A crise do dia 13 durou apenas cerca de meia hora e a luta com o Espírito foi seguida de sorrisos de felicidade, de êxtase e de lágrimas de alegria. Com os olhos muito abertos, a menina apresentava um quadro deslumbrante: juntando as mãos, erguia-se no leito e olhava o céu. As predições da pequena Cárita estavam realizadas em todos os pontos.

Na evocação havida à noite, como nos dias anteriores, o Espírito de Júlio mostrou-se mais suave e submisso, e novamente prometeu moderar os seus ataques contra a menina, cuja história jamais quis contar. Até prometeu orar.

Disse-nos o guia do médium:

“Não confieis muito em suas palavras. Elas podem ser sinceras, mas ele bem poderia enganar-vos para se livrar de vós. Mantende-vos em guarda. Cobrai as suas promessas, e se mais tarde tiverdes que censurá-lo, fazei-o com suavidade, para que note os bons sentimentos que tendes em relação a ele.

“LOUIS DAVID.”


No dia 14, a crise foi tão curta quanto na véspera e ainda menos viva. Foi igualmente seguida de êxtase e de manifestações de alegria. As lágrimas que corriam pelas faces da criança causavam nos assistentes uma emoção que eles não podiam ocultar.

Reunidos à noite, às 8 horas, como de costume, recebemos, de começo, esta comunicação:

“Como deveis ter notado, algo de mais sensível hoje se produziu na menina. Devemos dizer-vos que nossa presença influi muito sobre o Espírito. Nós lhe lembramos a promessa de ontem. A menina adquiriu novos conhecimentos no êxtase, e tentou repelir os ataques do obsessor. Na evocação de Júlio, não fazei desvios. Evitai os detalhes que fatigam uns aos outros. Sede francos e benevolentes com ele e o tereis mais cedo. Ele deu um grande passo à frente, como notamos nesta última crise.

“PEQUENA CÁRITA.”


1. Evocação de Júlio ─ Eis-me aqui, senhores.

2. ─ Quais são as vossas disposições de hoje? ─ São boas.

3. ─ Sentistes os efeitos de nossas preces? ─ Não muito.

4. ─ Perdoai à vossa vítima e sentireis uma satisfação que não conheceis. É o que sentimos no perdão das injúrias. ─ Eu! Muito pelo contrário. Eu encontrava minha satisfação na vingança de uma injúria. A isto chamo pagar as dívidas.

5. ─ Mas o sentimento de ódio que conservais na alma é um sentimento penoso que está longe de vos dar tranquilidade. ─ Acreditaríeis se eu vos dissesse que é o apego?

6. ─ Acreditamos. Contudo, tende a bondade de explicar como conciliais esse apego com a vingança que exercitais. O que era para vós o Espírito dessa criança numa outra existência, e o que fez ela para merecer esse rigor? ─ Inútil que mo pergunteis. Eu já vos disse: não me faleis dessa menina.

7. ─ Pois bem. Não falemos mais nisso, mas devemos felicitar-vos pela mudança em vós operada. Estamos felizes por isso. ─ Fiz progressos em vossa escola... Que vão dizer os outros?... Eles vão me vaiar e gritar: Ah! Tu te fazes eremita!

8. ─ Que vos importa sua troça, se tendes os louvores dos bons Espíritos? ─ É verdade.

9. ─ Olhai! Para provar aos maus Espíritos, vossos antigos companheiros, que rompeis completamente com eles, deveríeis perdoar inteiramente, a partir de hoje; mostrar-vos generoso e bom, deixando de modo absoluto a jovem pela qual nos interessamos. ─ Meu caro senhor, é impossível. Isto não pode acontecer de modo tão pronto. Deixai que eu me desfaça pouco a pouco do que me é uma necessidade. Sabeis a que vos exporíeis se eu parasse subitamente? A me ver voltar subitamente. Contudo, quero vos prometer uma coisa: poupar a menina e torturá-la amanhã menos do que hoje. Mas para isso imponho uma condição, a de aqui não ser trazido à força. Eu quero vir livremente, ao vosso apelo, e se faltar à minha palavra, concordo em perder este favor. Devo dizer-vos que essa mudança em mim é devida a essa figura radiosa que aí está, junto de vós, e que também vejo ao pé do leito da menina, todos os dias, no momento da luta. Nós somos tocados, malgrado nosso. Sem isto, vós e os vossos santos teríeis dificuldades por alguns dias. (O Espírito referia-se à pequena Cárita).

10. ─ Então ela é bonita? ─ Bela, muito bela, ó sim!

11. ─ Mas ela não está sozinha junto de vós durante as lutas? ─ Oh não! Há os outros, os antigos do corpo, os amigos. Aquilo não ri nunca, mas agora zombo muito deles.

OBSERVAÇÃO: O interrogante sem dúvida queria falar dos outros bons Espíritos, mas Júlio faz alusão aos maus Espíritos, seus companheiros.

12. ─ Vamos! Antes de nos deixar, prometemos esta noite orar por vós. ─ Eu peço dez orações. Dizei-as de coração, e amanhã estareis contentes comigo.

13. ─ Então, que sejam dez. E desde que estais com tão boas disposições, quereis escrever de coração uma prece de três palavras, ditada por mim? ─ De boa vontade.

O Espírito escreveu: “Ó meu Deus, dai-me a força de perdoar.” A 15 de janeiro deu-se a crise, como sempre, às 5 da tarde, mas durou apenas quinze minutos. A luta foi fraca e seguida de êxtase, sorrisos e lágrimas, que exprimiam alegria e felicidade.

Na reunião noturna, a pequena Cárita nos deu a comunicação seguinte:

“Meus caros protegidos, conforme à expectativa que vos demos, o fenômeno espírita que se passa aos vossos olhos se modifica, melhora dia a dia, perdendo seu caráter de gravidade. Para começar um conselho: Que isto seja para vós um tema de estudo, do ponto de vista das torturas físicas, e de estudos morais. Aos olhos do mundo, não façais sinais exteriores e não digais palavras inúteis. Que vos importa o que dirão? Deixai a discussão aos ociosos. Que o objetivo prático, isto é, a libertação desta menina e a melhora do Espírito que a obsidia, seja o elemento de vossas conversas íntimas e sérias. Não faleis de cura em voz alta. Pedi-a a Deus no recolhimento da prece.

“Sinto-me feliz ao dizer-vos que esta obsessão chega ao fim. O Espírito de Júlio melhorou sensivelmente. Também eu, com todas minhas possibilidades, agi sobre o Espírito da menina, a fim de que essas duas naturezas tão opostas se tornassem mais compatíveis. A combinação dos fluidos não oferecerá mais nenhum perigo real em relação ao organismo, e o desmoronamento que sentia esse corpo jovem ao contacto fluídico desaparece sensivelmente. Vosso trabalho não está acabado. A prece de todos deve sempre preceder e seguir a evocação.

“PEQUENA CÁRITA.”


Após a evocação de Júlio e a prece na qual ele é qualificado de Espírito mau, diz ele:

─ Eis-me aqui. Em nome da justiça, peço a reforma de certas palavras de vossa prece. Eu reformei os meus atos. Reformai as qualificações que me endereçais.

─ Tendes razão. Não cometeremos mais essa falha. Hoje viestes sem constrangimento?

─ Sim, vim livremente. Mantive minhas promessas.

─ Agora que estais calmo e com bons sentimentos, concordais em nos confiar os motivos de vosso rigor para com a menina?

─ Por favor, deixai o passado. Quando o mal está cauterizado, para que revolver a ferida? Ah! Sinto que o homem deve tornar-se melhor. Tenho horror ao meu passado e olho o futuro com esperança. Quando uma boca de anjo vos diz: A vingança é uma tortura para quem a exerce; o amor é a felicidade para aquele que o prodigaliza, ah! esse fermento que azeda e murcha o coração se extingue. É preciso amar.

“Estais admirados de minhas palavras? Elas não são criação minha. Elas me foram ensinadas, e eu tenho prazer em vo-las repetir. Ah! Como seríeis felizes se apenas por um minuto percebêsseis este anjo, radioso como um sol, bom e suave como um orvalho refrescante que cai em gotinhas finas sobre uma planta queimada pelo fogo do dia! Como vedes, não tenho dificuldade para falar, pois eu bebo na fonte.

“Um rápido golpe de vista sobre a minha vida vagabunda:

“Nascido no seio da miséria ligada ao vício, cedo saboreei os amores grosseiros da vida. Suguei com o leite a beberagem envenenada que me ofereciam todas as paixões. Eu vagava sem fé, sem lei, sem honra. Quando se tem que viver ao acaso, tudo é bom. A galinha do camponês, como o carneiro do castelão, servia-nos de refeição. A pilhagem era a minha ocupação, quando sem dúvida o acaso, pois não creio que a Providência vele sobre semelhantes celerados, me tomou e me equipou. Orgulhoso da roupa surrada que substituía os meus trapos, de alabarda na mão, unime a um bando de... maus companheiros, vivendo às custas de um senhor poltrão cuja estatura, por sua vez, superava a dos companheiros. Mas, que nos importava, a nós, a fonte de onde corriam para as nossas mãos a moeda e as provisões! Não entrarei em detalhes de fatos que me são pessoais. Eles são maus, horríveis e indignos de serem contados. Compreendeis que, educada em semelhante escola, a gente pode tornar-se um homem de bem?

“Separado pela morte, o bando foi reconstituir-se no mundo dos Espíritos. Longe de evitar as ocasiões de fazer o mal, nós o buscávamos. Em meus passeios errantes, encontrei uma vítima a fazer, e a fiz. Vós sabeis o resto.

“Por favor, senhores, orai também pelo bando. Por vezes vos admirais que uma região contenha mais malfeitores que outras. É muito simples. Não querendo separar-se, caem sobre uma região como uma nuvem de gafanhotos. Aos lobos as florestas, aos pombos os pombais.

“Eu tinha vivido essa existência terrena ao tempo de Luís XIII. Minha última existência foi sob o Império. Fui guerrilheiro. O bacamarte e o chapéu cônico enfeitado me agradavam muito. Eu amava o perigo, o roubo e as aventuras. Triste gosto! direis. Mas que fazer alhures? Eu estava habituado a viver nos bandos.

Deveis estar admirados da mudança sofrida: é obra de um anjo.

“Nada vos prometo para amanhã. Julgar-me-eis por meus atos.

“Uma prece, por favor. Por minha vez, vou fazer uma:

“Anjinho, abre as tuas asas; alça teu voo para o trono do Senhor; pede-lhe o meu perdão, pondo a seus pés o meu arrependimento.

“JÚLIO.”


Pergunta. ─ Já que estais em tão bom caminho, pedi a Deus pela pobre menina...

Resposta. ─ Não posso... seria uma irrisão ou uma crueldade que o carrasco abraçasse a sua vítima.

No dia seguinte, 16 de janeiro, a menina não teve crises, mas apenas mal-estar no estômago. Aos nossos olhos tinha-se operado a libertação.

À noite, às 8 horas, respondendo ao nosso chamado, o Espírito de Júlio deu a comunicação seguinte:

“Meus amigos, permiti-me este nome. Eu, o Espírito obsessor, o Espírito mau, astucioso e perverso; eu, que ainda há poucos dias atolava-me no mal e nisso tinha prazer, vou, com o auxílio do anjo, vos pregar moral. Eu mesmo me sinto surpreso com esta mudança e me pergunto se quem fala sou eu mesmo.

“Eu acreditava que estivesse extinto em minha alma todo sentimento, mas uma fibra ainda vibrava. O anjo a adivinhou e a tocou. Começo a ver e a sentir.

“O mal me causa horror. Lancei um olhar sobre o meu passado e só vi crimes. Uma voz suave me disse: Espera; contempla a alegria e a felicidade dos bons Espíritos; purifica-te; perdoa, em vez de vingar-te; ama em vez de odiar. Também eu te amarei, eu mesma, se quiseres amar, se te tornares melhor. Eu me senti enternecido. Agora compreendo a felicidade que experimentarão os homens, quando souberem praticar a caridade.

“Mocinha, (Ele se dirige à criança presente à sessão) tu, que eu havia escolhido para minha presa, como o abutre a suave pomba, ora por mim, e que o nome do reprovado se apague de tua memória. Recebi o batismo de amor das mãos do anjo do Senhor, e hoje visto a túnica da inocência. Pobre criança, desejo que tuas preces dirigidas ao Senhor em minha intenção em breve me livrem do remorso que me vai acompanhar como uma expiação justamente merecida.

“Meus amigos, por favor, continuai também vossas preces por meus miseráveis companheiros, que me perseguem com sua inveja maldosa, porque lhes escapo. Ainda ontem eu me perguntava o que diriam eles de mim. Hoje eu lhes digo: Eu venci. Meu passado está perdoado, pois eu soube arrepender-me. Fazei como eu. Travai a batalha contra o mal, que vos mantém cativos nesse lugar de tormentos e de desespero, e saí dele como vencedores. Se, como a vossa, a minha mão criminosa mergulhou no sangue, ela vos levará a água santa da prece que lava os estigmas do reprovado. Meu Deus, perdão!

“Obrigado, meus amigos, pelo bem que me fizestes. Pedir-vos-ei para ficar junto de vós, a partir de hoje, para assistir às vossas reuniões. Preciso beber na boa fonte, conselhos para preencher uma nova existência que pedirei a Deus, quando tiver sofrido a expiação de meu passado infame que a consciência me censura.

“JÚLIO.”


A 17 de janeiro, conforme a promessa de Júlio, a menina não experimentou nenhum mal-estar, nem mesmo no estômago. A pequena Cárita anunciou que ela sofreria uma prova moral, às cinco da tarde, durante alguns dias, ou durante o sono, prova que nada teria de penoso para ela, e cujos únicos sintomas seriam sorrisos e doces lágrimas, o que realmente aconteceu, durante dois dias. Nos dias seguintes houve a mais completa ausência do menor indício de crise. Nem por isso deixamos de observar a menina e de orar.


A 18 de fevereiro a Pequena Cárita nos ditou esta instrução:

“Meus bons amigos, bani todo o medo. A obsessão está acabada e bem acabada. Uma ordem de coisas estranhas para vós, mas que em breve vos parecerão muito naturais, será talvez a consequência desta obsessão, mas não obra de Júlio. Alguns desenvolvimentos aqui são necessários como ensinamento.

“Hoje, que conheceis a doutrina, a obsessão ou subjugação do ser material se vos apresenta não como um fenômeno sobrenatural, mas apenas com um caráter diferente das doenças orgânicas.

“O Espírito que subjuga penetra o perispírito do ser sobre o qual quer agir. O perispírito do obsedado recebe como um envoltório o corpo fluídico do Espírito estranho e, por esse meio, é atingido em todo o seu ser. O corpo material experimenta a pressão sobre ele exercida de maneira indireta.

“Pareceu estranho que a alma tenha podido agir fisicamente sobre a matéria animada. É ela, entretanto, que é autora de todos esses fatos. Ela tem por atributos a inteligência e a vontade. Por sua vontade, ela dirige, e o perispírito, que é de uma natureza semimaterial, é o instrumento do qual ela se serve.

“O mal físico é aparente, mas a combinação fluídica, que vossos sentidos não podem captar, esconde um número infinito de mistérios que se revelarão com o progresso da doutrina, considerada do ponto de vista científico.

“Quando o Espírito abandona a sua vítima, sua vontade não age mais sobre o corpo, mas a impressão que o perispírito recebeu pelo fluido estranho de que foi carregado não se apaga de repente, e continua ainda por algum tempo a influenciar o organismo. No caso de vossa jovem doente: tristeza, lágrimas, langores, insônia, distúrbios vagos, tais são os efeitos que poderão produzir-se em consequência dessa libertação, mas, tende certeza, e assegurai à menina e à sua família que essas consequências não lhes oferecerão perigo.

“Meu dever me chama, de maneira especial, a levar a bom termo o trabalho que convosco iniciei. Agora é preciso agir sobre o próprio Espírito da menina, por uma suave e salutar influência moralizadora.

“Quanto a vós, meus amigos, continuai a orar e a observar atentamente todos esses fenômenos. Estudai sem cessar, pois o campo está aberto e é vasto. Fazei conhecer e compreender todas estas coisas, e as ideias espíritas penetrarão pouco a pouco no espírito de vossos irmãos, que o aparecimento da doutrina encontrou incrédulos ou indiferentes.

“PEQUENA CÁRITA.”


OBSERVAÇÃO: Devemos um justo tributo de elogios aos nossos irmãos de Marmande pelo tato, a prudência e o devotamento esclarecido de que deram prova nessa circunstância. Por este brilhante sucesso, Deus recompensou sua fé, sua perseverança e seu desinteresse moral, pois nisso não buscaram qualquer satisfação do amor-próprio. A coisa não teria sido a mesma se o orgulho tivesse manchado sua boa ação. Deus retira seus dons de quem quer que não os use com humildade. Sob o domínio do orgulho, as mais eminentes faculdades mediúnicas se pervertem, se alteram e se extinguem, porque os bons Espíritos retiram o seu concurso. As decepções, os dissabores, as desgraças efetivas, desde esta vida, muitas vezes são a consequência do desvio da faculdade de seu objetivo providencial. Poderíamos citar vários exemplos tristes, entre os médiuns que suscitavam as mais belas esperanças.

A tal respeito, nunca seria demais nos compenetrarmos das instruções contidas na Imitação do Evangelho, números 285, 326 e seguintes, 333, 392 e seguintes.

Recomendamos às preces de todos os bons espíritas o Espírito acima, do obsessor Júlio, a fim fortalecê-lo em suas boas resoluções e de lhe fazer compreender o que se ganha fazendo o bem.

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