Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

Voltar ao Menu
Sob o título acima, o jornal de Constantinopla publicou, em março último, três artigos extensos sobre, ou melhor, contra o Magnetismo e o Espiritismo, que têm, naquela capital, muitos adeptos fervorosos. Como em todas as críticas em geral, em vão procuramos argumentos sérios, ao passo que vimos a prova evidente de que o autor fala do que não conhece ou que só conhece superficialmente. Ele julga o Espiritismo pelas aparências; por ouvir dizer; pela leitura de alguns fragmentos incompletos; pelo relato de alguns fatos excêntricos repudiados pelo próprio Espiritismo, o que lhe parece suficiente para lavrar uma sentença. Como se vê, é uma nova amostra da lógica dos nossos antagonistas. O que parece ter sido mais lido é o Sr. de Mirville, a magia do Sr. Dupotet e a vida do Sr. Home, mas da ciência espírita propriamente dita, nem se veem estudo nem observações sérias.

Estamos longe de pretender que quem estude o Espiritismo deva necessariamente aprová-lo. Mas, se tiver boa-fé, mesmo em sua desaprovação ele não se afastará da verdade e não nos fará dizer o contrário do que dissemos, o que ocorrerá necessariamente se ele não souber tudo quanto dissemos. Não reconheceríamos como crítico sério senão aquele que, saindo das generalidades, aos nossos argumentos opusesse argumentos peremptórios e provasse, sem réplica possível, que os fatos sobre os quais nos apoiamos são falsos, inventados ou radicalmente impossíveis. É o que ninguém ainda fez, tanto o redator do jornal de Constantinopla quanto os outros.

O Espiritismo tem sido atacado de todas as maneiras, com todas as armas que julgaram mais mortíferas. Nada foi poupado para o aniquilar, nem mesmo a calúnia. Não há o mais sutil escritor que, num opúsculo ou num folhetim, não se tenha gabado de lhe haver dado o golpe de misericórdia. Entre os seus adversários encontraram-se homens de real valor, que escavaram até o fundo o arsenal das objeções, com um ardor tanto maior quanto maior o interesse em abafá-lo. Entretanto, a despeito do que tenham feito, não só ele ainda está de pé, mas se expande, dia a dia, cada vez mais; implanta-se por toda parte, e o número de adeptos cresce incessantemente. Isto é um fato notório.

Que concluir de tudo isto? É que nada lhe puderam opor de sério e concludente. Nosso contraditor de Constantinopla será mais feliz? Duvidamos muito, pois não tem melhores argumentos para tanto. Seus artigos, longe de deter o movimento espírita no Oriente, só podem favorecê-lo, como aconteceu com todos do mesmo gênero, pois giram todos exatamente no mesmo círculo. É por isto que não nos preocupamos. Limitar-nos-emos a citar alguns fragmentos, que resumem a opinião do autor.

Não há uma só de suas objeções contra o Espiritismo que não encontre sua refutação em nossas obras. Se tivéssemos que rebater todos os absurdos criados sobre esse assunto, teríamos que nos repetir incessantemente, o que é inútil, considerando-se que, em definitivo, essas críticas sem nenhum fundo sério mais ajudam que prejudicam.

“Ao lado dos praticantes habilidosos, tais como os mágicos, a exemplo do Sr. Dupotet, ou dos médiuns, como o Sr. Home, vêm colocar-se operadores de uma ordem diferente, em cujas primeiras fileiras figura o Sr. Allan Kardec. Este pode ser apresentado como o modelo sobre o qual é moldado todo um quadro de espíritas cuja boa-fé não poderia ser posta em dúvida.

“Os espíritas de Constantinopla pertencem, como já dissemos, a essa escola literária e artística, que milita principalmente por seus escritos, dos quais a Revista Espírita, do Sr. Allan Kardec, é o exemplar mais perfeito. Foram os adeptos dessa categoria que estabeleceram a doutrina. A teoria dos Espíritos não tem mais nenhum segredo para eles; assim, na maioria dos casos, eles desdenham recorrer aos processos materiais empregados pelos médiuns comuns. Eles obtêm manifestações diretas. Seu processo, tão simples quanto eles próprios, consiste em tomar um lápis comum, como o primeiro profano que chegasse, com o auxílio do qual são postos em relação imediata com os Espíritos, e captam o seu ditado. Entre outras vantagens, o método lhes permite pôr de lado toda a modéstia e dar às suas próprias obras os mais exagerados louvores, cobrindo-se com o nome de seus supostos autores.

“Antes de crer na exatidão do médium escrevente mecânico, gostaríamos de ver um idiota escrever alguma bela página, tal como os Espíritos que agem por via mediúnica jamais ditaram. O médium intuitivo é mais aceitável, mas nos parece muito difícil que a experiência ensine a distinguir o pensamento do Espírito do pensamento do médium. Aliás, o papel representado por este último pode ser facilmente explicado. Na maioria dos casos ele é sincero, e é antes a ele do que aos operadores da ordem dos senhores Home e Dupotet que se aplicaria com justeza a opinião emitida pelo Sr. Conde de Gasparin. Quanto à opinião do Sr. de Mirville, aqui não há lugar para discuti-la, pois está perfeitamente constatado que nenhum médium, pelo menos em Constantinopla, seja feiticeiro.

“Se tivéssemos que defender os espíritas contra acusações tão odiosas quanto as que aqui repelimos, bastar-nos-ia, para demonstrar sua completa inocência, citar alguns dos ensinamentos dados pelos Espíritos:

“Os diferentes planetas que circulam no espaço são povoados como a nossa Terra. As observações astronômicas induzem a pensar que os meios para onde vão os seus respectivos habitantes são bastante diferentes para necessitar de organizações corpóreas diferentes, mas o perispírito se acomoda à variedade dos tipos e permite que Espírito que ele recobre encarne na superfície de planetas diferentes.

“O estado moral, intelectual e físico desses mundos forma uma série progressiva, na qual a nossa Terra não ocupa nem a primeira nem a última posição; é, contudo, um dos globos mais materiais e mais atrasados. Uns há onde o mal moral é desconhecido; onde as Artes e as Ciências chegaram a um grau de perfeição que não podemos compreender; onde a organização física nem está sujeita aos sofrimentos, nem às doenças; onde os homens vivem em paz, sem se prejudicarem, isentos de pesares e de preocupações.”

“Com meus novos instrumentos, esta noite verei homens na Lua...” diz, numa passagem, o rei Afonso. Mais felizes do que ele, os espíritas os viram, mas não é certo que invejem a sorte dos lunáticos. Pensamos que nada poderia impedi-los de gozar desde já desse mundo, muito à vontade.

“De tudo o que precede, vê-se a que se reduzem o maravilhoso e o sobrenatural do Espiritismo. Para reduzi-los a nada, basta examinar todos os fatos que acabamos de citar, sem ideias preconcebidas de nele encontrar as mais repreensíveis práticas de feitiçaria, ou a ação de um fluido cuja existência os cientistas negam. Para quem quisesse dar-se ao trabalho de assistir às suas sessões, sem sujeitar-se a tomar os fatos que eles produzem pelo que dizem ser, os Srs. Home e Dupotet, como todos os operadores da mesma ordem, serão muito evidentemente mistificadores interesseiros. Suas operações serão, no máximo, comparáveis, no que concerne à habilidade, às do Sr. Bosco, e este tem a mais a sinceridade, o que não permite levar mais longe a comparação entre eles.

“Muito diferentes dos mágicos de que acabamos de falar, os médiuns da categoria do Sr. Allan Kardec, categoria à qual pertencem, em geral, os médiuns de Constantinopla, são, ao contrário, mistificados. Todos os seus esforços tendem a tornar cada vez mais completa a mistificação de si próprios. A despeito de toda a boa-vontade que se lhes tenha, é realmente impossível levar a sério qualquer de suas práticas. Contudo, é permitido lamentar que criaturas honestas assim passem a maior parte de seu tempo compenetrando-se de erros que para eles se tornam realidade. Por mais inofensivos que, no fundo, possam ser esses erros, não é menos certo que não podem produzir senão resultados funestos, pois tomam o lugar da verdade. É neste sentido que são condenáveis.”

Os próprios espíritas de Constantinopla se encarregaram de responder, por meio de dois artigos que o jornal publicou em seus números de 21 e 22 de março último. Um é de um médium, que dá conta da maneira pela qual sua mediunidade se desenvolveu e triunfou sobre a sua incredulidade. O outro, que reproduzimos a seguir, é em nome de todos.

“Senhor redator,

“Vosso jornal acaba de publicar três longos artigos intitulados: “O Espiritismo em Constantinopla”, em consequência dos quais vimos pedir-vos espaço para as linhas seguintes:

“A doutrina que se baseia na crença num Deus infinitamente justo e infinitamente bom, o amor infinito; que indica como objetivo aos Espíritos criados por esse mesmo Deus, o encaminhamento para a perfeição cada vez mais completa e como castigo, no estado de Espírito, a perfeita percepção desse objetivo, com o pesar de dele se haver afastado, ao mesmo tempo que a necessidade de recomeçar essa marcha ascensional por novas encarnações... A doutrina que ensina a moral mais pura, aquela mesma que o Cristo expunha tão bem por estas simples palavras: Amai-vos uns aos outros... Uma tal doutrina de amor, digamo-lo alto e bom som, pode perfeitamente privar-se dessas manifestações que o autor dos artigos O Espiritismo em Constantinopla, depois de haver prometido explicá-las fora do Espiritismo, limita-se a qualificar de mistificações.

“Mas essas manifestações, hoje tão completamente constatadas, e cuja prova se acha quase que em cada página da história da Humanidade, Deus as permite continuamente, a fim de dar a todos a prova da solidariedade existente entre os Espíritos encarnados e os não encarnados, e isto a fim de que uns e outros se auxiliem mutuamente, e que o ser espiritual, chamado à vida eterna, possa atingir mais facilmente, e sobretudo mais seguramente, o objetivo providencial assinalado à criação.

“Se os fatos dos quais decorrem semelhantes teorias, que são a base da Doutrina Espírita, podem ser tomados, por certas pessoas, como mistificações, ao menos deveriam elas indicar as razões, e, o que seria ainda melhor, apresentar outras teorias mais racionais e sobretudo mais verdadeiras.

“Agora, chamai a verdade feitiçaria, magia, prestidigitação e outros epítetos ainda mais ridículos, e não impedireis que essa verdade se propague e estenda os seus raios benfazejos sobre todo o gênero humano.

“Eis por que o Espiritismo espalhou-se tão rapidamente em toda a face da Terra, e por que, a despeito das críticas do gênero dos citados artigos, isto não impede que os seus adeptos se contem por milhões.

“Os espíritas de Constantinopla.”

Dirigimos aos nossos irmãos espíritas de Constantinopla, tanto em nosso nome pessoal, quanto no dos membros da Sociedade de Paris, as sinceras felicitações que merece sua resposta, ao mesmo tempo digna e moderada.

A carta seguinte, que nos escreveu a respeito o Sr. Repos, advogado, presidente da Sociedade Espírita de Constantinopla, testemunha muito bem o devotamento à causa da doutrina, para que consideremos um dever e um sincero prazer publicá-la, a fim de que os espíritas de todos os países saibam que na capital do Oriente há irmãos com cuja fraternidade podem contar. Falando do Oriente, não devemos esquecer os de Smirna. Eles também fazem jus a todas as suas simpatias.

“Constantinopla, 15 de junho de 1864.

“Caro mestre e mui honrado irmão em Espiritismo,

“Recebi em tempo vossa estimável carta de 8 de abril, que me deu o maior prazer, como aos nossos irmãos espíritas, aos quais não deixei de dar conhecimento em sessão.

“Todos os espíritas de Constantinopla ligam-se a mim para, em conjunto, assegurarmos os nossos fraternos sentimentos a vós e a todos os espíritas que fazem parte da Sociedade de Paris. Nós vos agradecemos pelo encorajamento que nos dais como estímulo para combatermos por nossa grande causa. Ficai persuadido de que não falharemos na tarefa que empreendemos, e que todos os nossos esforços tenderão para a propagação da verdade, do amor ao bem e da emancipação intelectual dos outros homens, nossos mãos em Deus, ainda que tenhamos que sustentar as mais encarniçadas lutas contra os nossos inimigos. Se há homens bastante servis e bastante covardes para ousarem combater a verdade, também os há suficientemente independentes e corajosos para defendê-la, assim obedecendo aos sentimentos de justiça e de amor fraterno, que fazem do ser humano um verdadeiro filho de Deus.

“Foi com vivíssimo interesse que li os interessantes detalhes em vossa carta referida, em relação ao progresso do Espiritismo na França e alhures. Esperamos que no futuro a ideia cresça mais e mais e o desejamos ardentemente pelos nossos irmãos terrenos de todos os países e de todas as religiões.

“O jacto possante da revelação brilha por todos os lados. Cego é quem não o vê, imprudente quem o nega, insensato quem o combate buscando enterrá-lo na fonte. Sua água pura e límpida não vem do trono eterno para se espalhar em suave e fecundo orvalho sobre toda a Terra, que deve regenerar? Nenhuma força humana poderá, então, comprimi-la!... Com efeito, não vemos que, desde que um jacto surge em qualquer parte, se alguém fizer esforços para comprimi-lo, logo se veem milhares de jactos surgindo em todas as direções e em todos os degraus da escala social? Tanto é verdade que a vontade divina é onipotente, e que num dado momento nenhum obstáculo se lhe pode opor, sob pena de ser derrubado e esmagado pelo carro brilhante da justiça e da verdade.

“Caro mestre, tenho um agradável dever a cumprir, o de vos cumprimentar, em meu nome e no de todos os irmãos espíritas do Oriente, pela condenação sofrida por vossas obras pela santíssima inquisição do pensamento, quero dizer a condenação do índex. Rejubilai-vos, pois, com todos os nossos irmãos, se vossas obras levantaram grandes cóleras, que não vos puderam ferir senão se ridicularizando e cada vez mais deixando as unhas de fora. Tal julgamento já foi declarado nulo e não endossado pela opinião pública de todos os países.

“Sem dúvida recebestes os jornais de Constantinopla que vos enviei e nos quais se achavam, em sua maior parte, os artigos contra o Espiritismo e os espíritas. Vistes as nossas duas pequenas respostas? Como as julgais? Aqui produziram bom efeito e agora se fala do Espiritismo mais do que nunca. Esperamos impacientemente o que direis para nos ajudar a combater a maldade e a mentira, que são o único apanágio dos inimigos de nossa bela doutrina.

“Aqui começou a perseguição surda que anunciastes. Um dos nossos irmãos deve à sua qualidade de espírita a perda do emprego, outros são atacados e ameaçados em seus mais caros interesses de família ou nos meios de subsistência, pelas tenebrosas manobras dos eternos inimigos da luz, que ousam dizer que o Espiritismo é obra do anjo das trevas! Se é assim que julgam extingui-lo, enganamse. A perseguição, longe de deter, faz crescer toda ideia que vem do alto. Ela apressa a sua eclosão e a sua maturidade, porque é o adubo que a fecunda; ela demonstra a inexistência de qualquer meio inteligente para combatê-la. Teria a ideia cristã sido abafada no sangue dos mártires?

“Até à vista, caro mestre. Crede em minha dedicação muito sincera a vós e aos irmãos espíritas de Paris, aos quais vos peço apresenteis os meus cumprimentos.

“B. REPOS filho advogado”

TEXTOS RELACIONADOS

Mostrar itens relacionados

Utilizamos cookies para melhorar sua experiência. Saiba mais em nossa Política de Privacidade.