Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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Sob esse título, o Sr. Aug. Bez, de Bordeaux, acaba de publicar o relato das manifestações de Jean Hillaire, notável médium cujas faculdades lembram, sob muitos aspectos, as do Sr. Home, e até as ultrapassam em certos aspectos.

O Sr. Home é um homem do mundo, de maneiras suaves e cheias de urbanidade, e só se revelou à mais alta aristocracia. Jean Hillaire é um simples agricultor da Charente-Inférieure, pouco letrado e que vive de seu trabalho. Suas maiores viagens, ao que parece, foram de Sonnac, sua aldeia, a Saint-Jean-d’Angély e a Bordeaux. Mas Deus, na repartição de seus dons, não leva em conta as posições sociais; ele quer que a luz se faça em todos os níveis da escala, e por isso tanto os concede ao menor como ao maior.

A crítica e a odiosa calúnia não pouparam o Sr. Home. Sem consideração às altas personagens que o honraram com sua estima, que o receberam e ainda o recebem em sua intimidade, a título de comensal e amigo, a incredulidade trocista, que nada respeita, se pôs a escarnecê-lo, a apresentá-lo como um vil charlatão, um hábil trapaceiro, numa palavra, como um refinado saltimbanco. Ela não se deteve nem mesmo ante a ideia de que tais ataques atingiam a honorabilidade das mais respeitáveis pessoas, por isso mesmo acusadas de compadrio com um suposto criador de ilusões. Dissemos a seu respeito que basta tê-lo visto para julgar que ele seria o mais atabalhoado charlatão, porque ele não tem nem as atitudes chocantes nem a loquacidade dos charlatães, características que não se coadunariam com sua timidez habitual. Aliás, quem poderia dizer que ele alguma vez tivesse fixado preço às suas manifestações? O motivo que há pouco tempo o conduzia a Roma, de onde foi expulso, para ali aperfeiçoar-se em escultura e desta fazer profissão, é o mais formal desmentido aos seus detratores. Mas que importa! Eles disseram que é um charlatão e não querem se retratar.

Os que conhecem Hillaire igualmente puderam convencer-se de que ele seria um charlatão ainda mais desajeitado. Nunca seria demais repetir que o móvel do charlatanismo é sempre o interesse; onde não há nada a ganhar, o charlatanismo não tem cabida; onde se tem a perder, seria uma estupidez. Ora, que proveito material tirou Hillaire de suas faculdades? Muita fadiga, uma grande perda de tempo, aborrecimentos, perseguições, calúnias. O que ele ganhou, e que para ele não tem preço, foi uma fé viva, que ele não tinha, em Deus, em sua bondade, na imortalidade da alma e na proteção dos bons Espíritos. Não é precisamente esse o fruto buscado pelo charlatanismo. Mas ele sabe, também, que essa proteção não se obtém senão se melhorando. É isso que ele se esforça por fazer, e também não é isso que interessa aos charlatães. É ainda o que o faz suportar com paciência as vicissitudes e as provações.

Em semelhantes casos, uma garantia de sinceridade está, pois, no absoluto desinteresse. Antes de acusar um homem de charlatanismo, é preciso perguntar que proveito ele tira em enganar, porque os charlatães não são bastante tolos para nada ganharem e ainda menos para perder em vez de ganhar. Assim, os médiuns têm uma resposta peremptória a dar aos detratores, perguntando-lhes: Quanto me pagaram para fazer o que faço? Uma garantia não menos grande e de natureza a causar viva impressão, é a reforma de si mesmo. Só uma convicção profunda pode levar um homem a vencer-se, a desembaraçar-se do que em si há de mau, e a resistir aos perniciosos arrastamentos. Então, já não é apenas a faculdade que admiramos, é à pessoa que respeitamos, e que se impõe à troça.

As manifestações obtidas por Hillaire são para ele uma coisa santa. Ele as considera como um favor de Deus. Os sentimentos que elas lhe inspiram estão resumidos nas seguintes palavras, extraídas do livro do Sr. Bez:

“O rumor desses novos fenômenos espalhou-se por toda parte com a rapidez do relâmpago. Todos os que até então ainda não haviam assistido a manifestações espíritas, ficaram roídos de vontade de ver. Mais do que nunca, Hillaire foi crivado de pedidos, de convites de toda sorte. Ofertas de dinheiro foram feitas por várias pessoas, a fim de convencê-lo a dar sessões em suas casas, mas Hillaire sempre teve a convicção profunda de que suas faculdades só lhe são dadas com objetivo de caridade, a fim de trazer a fé à alma dos incrédulos e de arrancá-los do materialismo que os rói impiedosamente e os mergulha no egoísmo e nos desregramentos. A partir de quando Deus lhe concedeu a graça de se servir dele para esclarecer os seus compatriotas, e as manifestações de uma ordem tão elevada são produzidas por seu intermédio, o simples médium de Sonnac considerou sua mediunidade como puro sacerdócio e se persuadiu que, no dia em que aceitasse a menor retribuição, suas faculdades lhe seriam retiradas, ou seriam entregues como um joguete aos maus Espíritos ou aos levianos, que as utilizariam para fazer o mal ou mistificar todos aqueles que ainda cometessem a imprudência de a ele se dirigirem. Entretanto, a situação pecuniária desse humilde instrumento se acha em estado muito precário. Sem fortuna, é preciso que ele ganhe o pão com o suor de seu rosto e, muitas vezes, a grande fadiga que experimenta quando se produzem algumas manifestações importantes muito prejudica as forças que lhe são necessárias para manejar a pá e a picareta, dois instrumentos que ele incessantemente deve ter nas mãos.”

Nos momentos de desânimo que, como para Job tinham por objetivo experimentar sua fé e sua resignação, Hillaire encontrou asilo e assistência nos amigos reconhecidos, que lhe deviam a consolação pelo Espiritismo. É a isto que se pode chamar uma venda das manifestações dos Espíritos? Certamente não, pois é um socorro que Deus lhe enviou, que ele devia e podia aceitar sem escrúpulo; sua consciência pode estar calma, porque não traficou com os dons que recebeu de graça; ele não vendeu as consolações aos aflitos nem a fé que deu aos incrédulos. Quanto aos que lhe vieram em auxílio, cumpriram um dever de fraternidade, pelo que serão recompensados.

As faculdades de Hillaire são múltiplas. Ele é médium vidente de primeira ordem, auditivo, falante, extático e ainda escrevente. Obteve a escrita direta e transportes admiráveis. Várias vezes foi levantado e transpôs o espaço sem tocar o solo, o que não é mais sobrenatural do que ver erguer-se uma mesa. Todas as comunicações e todas as manifestações que obtém atestam a assistência de muito bons Espíritos e sempre se dão em plena luz. Muitas vezes ele entra espontaneamente em sono sonambúlico, e é quase sempre nesse estado que se produzem os mais extraordinários fenômenos.

A obra do Sr. Bez é escrita com simplicidade e sem exaltação. Não só o autor diz o que viu, mas cita numerosas testemunhas oculares, a maioria das quais se interessaram pessoalmente pelas manifestações. Esses não teriam deixado de protestar contra as inexatidões, sobretudo se ele lhes tivesse feito representar um papel contrário ao que se passou. O autor, justamente estimado e considerado em Bordeaux, não se teria exposto a receber semelhantes desmentidos. Pela linguagem se reconhece o homem consciencioso, que teria escrúpulo em alterar conscientemente a verdade. Aliás, não há um só fenômeno cuja possibilidade não seja demonstrada pelas explicações que se acham no Livro dos médiuns.

Essa obra difere da do Sr. Home por que, em vez de ser um simples relato de fatos muitas vezes repetidos, sem deduções nem conclusões, encerra, sobre quase todos os que são relatados, apreciações morais e considerações filosóficas que dela fazem um livro ao mesmo tempo interessante e instrutivo e no qual se reconhece o espírita, não somente convencido, mas esclarecido.

Quanto a Hillaire, felicitando-o por seu devotamento, nós o exortamos a jamais perder de vista que o que constitui o principal mérito de um médium não é a transcendência de suas faculdades, que lhe podem ser retiradas de um momento a outro, mas o bom uso que delas faz. Desse uso depende a continuação da assistência dos bons Espíritos, porque há uma grande diferença entre o médium bem dotado e o que é bem assistido. O primeiro não excita senão a curiosidade; o segundo, tocado ele próprio no coração, reage moralmente sobre os outros, em razão de suas qualidades pessoais. Tanto no seu interesse, quanto no da causa, desejamos que os elogios de amigos, por vezes mais entusiastas que prudentes, nada lhe tirem de sua simplicidade e de sua modéstia, e não o façam cair na cilada do orgulho que já causou a perda de tantos médiuns.

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