Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

Allan Kardec

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São Carlos Magno no colégio de Chartres

Este ano, no Colégio de Chartres, tiveram a ideia de juntar à solenidade do banquete de São Carlos Magno uma conferência literária. Dois alunos de filosofia sustentaram uma controvérsia cujo assunto era o Espiritismo. Eis o relato feito pelo Journal de Chartres de 11 de março de 1866:

“Para fechar a sessão, dois alunos de Filosofia, os Srs. Ernest Clément e Gustave Jumentié, colocaram em discussão, num diálogo vivo e animado, uma questão que tem o privilégio, hoje, de apaixonar muitas cabeças: queremos dizer o Espiritismo.

“J. censura em seu companheiro, sempre tão jovial, um ar sombrio e fechado que o faz parecer um autor de melodramas, e lhe pergunta de onde pode provir tão grande mudança.

“C. responde que deitou a cabeça numa doutrina sublime, o Espiritismo, que veio confirmar de maneira irrefutável a imortalidade da alma e outras concepções da filosofia espiritualista. Não é uma quimera, como pretende o seu interlocutor; é um sistema apoiado em fatos autênticos, tais como as mesas girantes, os médiuns, etc.

“─ Certamente, responde J., não serei tão insensato, meu pobre amigo, a ponto de discutir contigo sobre sonhos loucos com os quais todo mundo hoje está completamente desiludido. E quando não se faz mais do que rir na cara dos espíritas, não irei, por uma vã disputa, dar às vossas ideias mais peso do que merecem e lhes fazer a honra de uma refutação séria. As admiráveis experiências dos Davenport demonstraram qual era a vossa força e a fé que era preciso ter em vossos milagres. Mas felizmente elas receberam a justa punição de sua velhacaria. Após alguns dias de um triunfo usurpado, eles foram forçados a voltar à sua pátria, e nós provamos, mais uma vez, que há apenas um passo do Capitólio à Rocha Tarpeia.

“─ Bem vejo, diz C..., por sua vez, que não és partidário do progresso. Ao contrário, deverias ter pena da sorte desses infortunados. Todas as ciências, no começo, tiveram os seus detratores. Não vimos Fulton repelido pela ignorância e tratado como um louco? Não vimos também Lebon desconhecido em sua pátria, morrer miseravelmente sem ter desfrutado de seus trabalhos? Entretanto, hoje a superfície dos mares é sulcada por barcos a vapor, e o gás por toda parte espalha sua viva luz.

“J. ─ Sim, mas essas invenções repousavam em bases sólidas; a Ciência era o guia desses gênios e devia forçar a posteridade esclarecida a reparar os erros de seus contemporâneos. Mas quais são as invenções dos espíritas? Qual o segredo de sua ciência? Todo mundo pôde admirá-la, todo o mundo pôde aplaudir o engenhoso mecanismo de sua varinha...

“C. ─ Ainda piadas? Entretanto, eu te disse que há entre os adeptos do Espiritismo gente muito honesta, gente cuja convicção é profunda.

“J. ─ É verdade, mas o que isso prova? Que o bom-senso não é uma coisa tão comum quanto se pensa, e que, como disse o poeta da Razão: Um tolo sempre acha um mais tolo que o admira.

“C. ─ Boileau não teria falado assim se tivesse visto as mesas girantes. Que dizes contra isto?

“J. ─ Que jamais consegui mover a menor mesinha.

“C. ─ É porque és um profano. A mim, jamais uma mesa resistiu. Fiz girar uma que pesava 200 quilos, com os pratos, as travessas, as garrafas...

“J. ─ Tu me farias tremer a mesa de São Carlos Magno, se o apetite dos convivas não a tivesse tão prudentemente desguarnecido...

“C. ─ Não te falo dos chapéus. Mas eu lhes imprimiria uma poderosa rotação ao mais leve contato.

“J. ─ Não me admiro que tua pobre cabeça tenha virado para eles.

“C. ─ Mas, enfim, piadas não são razões; são o argumento da impotência. Tu não provas nada, nada refutas.

“J. ─ É que tua doutrina não passa de um nada, de uma quimera, de um gás incolor, impalpável ─ eu prefiro o gás de iluminação ─ uma exalação, um vapor, uma fumaça. Palavra, minha escolha está feita, eu prefiro a do champagne. Oh! Miguel de Cervantes! por que nasceste dois séculos mais cedo? É ao teu imortal Dom Quixote que cabia reduzir o Espiritismo a pó. Ele brandiu sua lança valorosa contra os moinhos de vento. Entretanto, bem que eles giravam! Como teria rachado de alto a baixo os armários falantes e sonantes! E tu, seu fiel escudeiro, ilustre Sancho Pança, é a tua filosofia profunda, é a tua moral sublime que seria a única capaz de desnudar essas graves teorias.

“C. ─ Por mais que digais, senhores filósofos, negais o Espiritismo porque não sabeis o que fazer com ele, porque ele vos embaraça.

“J. ─ Oh! Ele não me causa nenhum embaraço, e bem sei o que faria se tivesse voz no capítulo. Espíritas, magnetistas, sonâmbulos, armários, mesas falantes, chapéus girantes com as cabeças que eles sombreiam, eu os mandaria todos passar uma temporada... no hospício.”

“Algumas pessoas ficarão admiradas, talvez escandalizadas de ver os alunos do colégio de Chartres abordarem, sem outras armas além da troça, uma questão que se intitula a mais séria dos tempos modernos. Francamente, depois da aventura recentíssima dos irmãos Davenport, pode censurar-se a gente moça por se divertir com essa mistificação? Essa idade não tem piedade.

“Poderíamos, sem dúvida, voltando a uma de suas frases de empréstimo, ensinar a esses rapazes espertalhões que as grandes descobertas muitas vezes passam pela Rocha Tarpeia antes de chegar ao Capitólio, e que, para o Espiritismo, o dia da reabilitação talvez não esteja longe. Já os jornais nos anunciam que um músico de Bruxelas, que é também espírita, afirma estar em contato com os Espíritos de todos os compositores mortos; que nos vai transmitir suas inspirações, e que dentro em pouco teremos obras realmente póstumas dos Beethoven, dos Mozart, dos Weber, dos Mendelssohn! ... Pois bem! Que seja. Os estudantes são muito condescendentes: quiseram rir, riram; quando for tempo de pedir desculpas, pedirão.”

Ignoramos com que propósito permitiram fosse tratada essa questão numa solenidade de colégio. Contudo, duvidamos que seja por simpatia pelo Espiritismo e visando propagá-lo entre os alunos. Alguém, falando a respeito, dizia que isto se parecia com certas conferências em uso em Roma, nas quais há o advogado de Deus e o advogado do diabo. Seja como for, há que convir que nenhum dos dois campeões era muito forte; sem dúvida teriam sido mais eloquentes se conhecessem melhor o assunto, que não estudaram, como se vê, senão nos artigos de jornais a propósito dos irmãos Davenport.

O fato não deixa de ter sua importância, e se o objetivo foi desviar a mocidade do estudo do Espiritismo, duvidamos muito que tenha sido atingido, porque a juventude é curiosa. Até agora o nome do Espiritismo não tinha transposto senão clandestinamente a porta dos colégios e aí só era pronunciado aos cochichos. Ei-lo agora oficialmente instalado nos bancos, onde irá longe. Considerando-se que a discussão é permitida, será preciso estudar. É tudo o que pedimos. A esse propósito, as reflexões do jornal são muito judiciosas.

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