Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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Carta de um defunto a seu amigo

Sobre as relações existentes entre os Espíritos e aqueles que eles amaram na Terra

Meu bem amado, antes de tudo devo advertir-te que das mil coisas que, estimulado por uma nobre curiosidade, desejas aprender de mim, e que eu teria tanto desejo de poder dizer-te, ouso apenas comunicar-te uma só, pois de mim não dependo, absolutamente. Minha vontade depende, conforme já te disse, da vontade daquele que é a suprema sabedoria. Minhas relações contigo não são baseadas senão no teu amor. Esta sabedoria, este amor personificados, muitas vezes nos impelem, a mim e aos meus mil vezes mil convivas de uma felicidade que se torna continuamente mais elevada e embriagadora, para os homens ainda mortais, e nos fazem entrar com eles em relações certamente agradáveis para nós, embora muitas vezes obscurecidas e nem sempre bastante puras e santas. Recebe de mim algumas noções acerca destas relações. Não sei como conseguirei fazer-te compreender esta grande verdade que provavelmente te espantará muito, malgrado a sua realidade. É que nossa própria felicidade muitas vezes depende, relativamente, bem entendido, do estado moral daqueles que deixamos na Terra e com os quais entramos em relações diretas.

Seu sentimento religioso nos atrai; sua impiedade nos repele.

Nós nos regozijamos com suas puras e nobres alegrias, isto é, com suas alegrias espirituais desinteressadas. Seu amor contribui para a nossa felicidade; assim, sentimos, senão um sentimento semelhante ao sofrimento, ao menos uma diminuição de prazer, quando eles se deixam envolver-se em sombras por sua sensualidade, seu egoísmo, suas paixões animais ou pela impureza de seus desejos.

Meu amigo, peço-te que te detenhas ante estas palavras: envolver-se em sombras.

Todo pensamento divino produz um raio de luz, que jorra do homem amante, e que não é visto nem compreendido senão pelas naturezas amantes e radiantes. Toda espécie de amor tem seu raio de luz que lhe é particular. Esse raio, reunindo-se à auréola que cerca os santos, a torna ainda mais resplendente e mais agradável à visão. Do grau dessa claridade e dessa amenidade depende, muitas vezes, o grau de nossa própria felicidade, ou da felicidade que sentimos de nossa existência. Com o desaparecimento do amor, essa luz se extingue, e com ela o elemento de felicidade daqueles que nós amamos. Um homem que se torna estranho ao amor se envolve em sombra, no sentido mais literal e mais positivo do vocábulo; ele se torna mais material, e consequentemente mais elementar, mais terrestre, e as trevas da noite o cobrem com o seu véu. A vida, ou o que para nós é a mesma coisa: o amor do homem, produz o grau de sua luz, sua pureza luminosa, sua identidade com a luz, a magnificência de sua natureza.

Só estas últimas qualidades tornam possíveis e íntimas as nossas relações com ele. A luz atrai a luz. É-nos impossível agir sobre as almas sombrias. Todas as naturezas não amantes nos parecem sombrias. A vida de cada mortal, sua verdadeira vida, é como o seu amor; sua luz se assemelha ao seu amor; de sua luz decorre a nossa comunicação com ele e a sua conosco. Nosso elemento é a luz cujo segredo não é compreendido por nenhum mortal. Nós atraímos e somos atraídos por ela. Essa vestimenta, esse órgão, esse veículo, esse elemento, no qual reside a força primitiva que tudo produz, a luz, numa palavra, forma para nós o traço característico de todas as naturezas.

Nós clareamos na medida do nosso amor; reconhecem-nos por essa claridade, e somos atraídos por todas as naturezas amantes e radiantes como nós. Por efeito de um movimento imperceptível, dando uma certa direção aos nossos raios, nós podemos fazer nascer em naturezas que nos são simpáticas, ideias mais humanas, suscitar ações, sentimentos mais nobres e mais elevados; mas não temos o poder de forçar ou de dominar ninguém, nem de impor a nossa vontade aos homens cuja vontade é inteiramente independente da nossa. O livre-arbítrio do homem nos é sagrado. É-nos impossível transmitir um só raio de nossa pura luz a um homem a quem falta sensibilidade. Ele não possui nenhum sentido, nenhum órgão para poder receber de nós a menor coisa. Do grau de sensibilidade que possui um homem depende ─ Oh! Permite-me repeti-lo em cada uma de minhas cartas, ─ sua aptidão para receber a luz, sua simpatia com todas as naturezas luminosas e com o seu protótipo primordial. Da ausência da luz nasce a incapacidade de aproximar-se das fontes da luz, ao passo que milhares de naturezas luminosas podem ser atraídas por uma só natureza semelhante.

O Homem-Jesus, resplendente de luz e de amor, foi o ponto luminoso que incessantemente atraía para si legiões de anjos. Naturezas sombrias, egoístas, atraem para si Espíritos sombrios, grosseiros, privados de luz, malévolos, e são mais envenenadas por eles, ao passo que as almas amantes ainda se tornam mais puras e mais amantes, por seu contato com os Espíritos bons e amantes.

Jacob adormecido, cheio de sentimentos piedosos, vê os anjos do Senhor chegarem até ele em multidão, e a sombria alma de Judas Iscariotes dá ao chefe dos Espíritos sombrios o direito, direi mesmo o poder, de penetrar na sombria atmosfera de sua natureza odienta. Os Espíritos radiosos são abundantes onde se encontra um Elíseo; legiões de Espíritos sombrios pululam entre as almas sombrias.

Meu bem amado, medita bem no que acabo de dizer-te. Encontrarás numerosas aplicações para isto nos livros bíblicos, que encerram verdades ainda intactas, assim como instruções da mais alta importância, concernentes às relações que existem entre os mortais e os imortais, entre o mundo material e o mundo dos Espíritos.

Não depende senão de ti encontrar-te sob a influência benéfica dos Espíritos amantes ou de afastá-los de ti; podes mantê-los junto a ti ou forçá-los a te deixar. Depende de ti tornar-me mais ou menos feliz.

Agora deves compreender que todo ser amante torna-se mais feliz quando encontra um ser tão amante quanto ele; que o mais feliz e o mais puro dos seres torna-se menos feliz quando encontra uma diminuição de amor naquele que ama; que o amor abre o coração ao amor, e que a ausência desse sentimento torna mais difícil, por vezes mesmo impossível, o acesso de toda comunicação íntima.

Se desejas tornar-me, a mim que já desfruto da felicidade suprema, ainda mais feliz, torna-te ainda melhor. Por isto, tu me tornarás mais radioso e poderás simpatizar com todas as naturezas radiosas e imortais. Elas se apressarão a vir para junto de ti; sua luz reunir-se-á à tua e a tua à deles; sua presença tornar-te-á mais puro, mais radiante, mais vivaz e, o que te parecerá difícil acreditar, mas não o é por isto menos positivo, por efeito de tua luz, aquela que radiará de ti, elas mesmas tomar-se-ão mais luminosas, mais vivazes, mais felizes de sua existência, e, por efeito de teu amor, ainda mais amantes.

Meu bem-amado, existem relações imperecíveis entre o que chamais de mundos visível e invisível; uma comunhão incessante entre os habitantes da Terra e os do Céu, que sabem amar; uma ação benéfica recíproca de cada um desses mundos sobre o outro.

Meditando e analisando esta ideia com cuidado, reconhecerás cada vez mais a sua verdade, a sua urgência e a sua santidade.

Não te esqueças, irmão da Terra: tu vives visivelmente num mundo que ainda é invisível para ti!

Não o esqueças! No mundo dos Espíritos amantes, alegrar-se-ão por teu crescimento em amor puro e desinteressado!

Achamo-nos junto a ti, quando nos julgas bem longe. Jamais um ser amante se acha só e isolado.

A luz do amor atravessa as trevas do mundo material, para entrar num mundo menos material.

Os Espírito amantes e luminosos acham-se sempre na vizinhança do amor e da luz.

Estas palavras do Cristo são literalmente verdadeiras: “Onde estiverem reunidos dois ou três em meu nome, aí estarei com eles.”

Também é indubitavelmente certo que podemos afligir o Espírito de Deus por nosso egoísmo, e alegrá-lo por nosso verdadeiro amor, conforme o profundo sentido destas palavras: O que ligardes na Terra será ligado no Céu; o que desligardes na Terra será também desligado no Céu. Desligais pelo egoísmo, ligais pela caridade, isto é, pelo amor. Vós vos aproximais e vos afastais de nós. Nada é mais claramente compreendido no Céu do que o amor dos que amam na Terra.

Nada é mais atraente para os Espíritos bem-aventurados pertencentes a todos os graus de perfeição, do que o amor dos filhos da Terra.

Vós, que ainda sois chamados mortais, pelo amor podeis fazer descer o Céu sobre a Terra.

Poderíeis entrar conosco, bem-aventurados, numa comunicação infinitamente mais íntima do que podeis supor, se vossas almas se abrissem à nossa influência pelos impulsos do coração.

Muitas vezes estou junto a ti, meu bem-amado! Gosto de me encontrar na tua esfera de luz.

Permite-me dirigir-te ainda algumas palavras de confiança.

Quando te aborreces, a luz que irradia de ti, no momento em que pensas nos que tu amas ou nos que sofrem, se obscurece e, então, sou forçado a afastar-me de ti, pois nenhum Espírito amante pode suportar as trevas da cólera. Ainda recentemente tive que deixar-te. Eu, por assim dizer, te perdi de vista e me dirigi para outro amigo, ou antes, a luz de seu amor me atraiu para si. Ele orava, derramando lágrimas por uma família benfeitora, momentaneamente caída na maior miséria e que ele não estava em condições de socorrer. Oh! Como seu corpo terrestre já me parecia luminoso; foi como se uma claridade deslumbrante o inundasse. Nosso Senhor aproximou-se dele e um raio de seu espírito caiu nessa luz. Que felicidade para mim poder mergulhar nessa auréola e, retemperado por essa luz, estar em estado de inspirar à sua alma a esperança de um socorro próximo! Pareceu-me ouvir uma voz do fundo de sua alma, dizer-lhe: “Nada temas! Crê! Desfrutarás a alegria de poder aliviar aqueles por quem acabas de pedir a Deus.” Ele se ergueu inundado de alegria depois da prece. No mesmo instante fui atraído para outro ser radioso, também em prece... Era a nobre alma de uma virgem que orava e dizia: “Senhor! Ensina-me a fazer o bem segundo a tua vontade.” Pude e ousei inspirar-lhe a seguinte ideia: “Não farei bem mandando a esse homem caridoso, que conheço, um pouco de dinheiro, para que o empregue, ainda hoje, em proveito de alguma família pobre?”

Ela apegou-se a esta ideia com uma alegria infantil; recebeu-a como se tivesse recebido um anjo descido do Céu. Essa alma piedosa e caritativa reuniu uma soma considerável; depois escreveu uma cartinha muito afetuosa, dirigida àquele por quem acabava de orar, e que a recebeu, assim como o dinheiro, apenas uma hora depois de sua prece, derramando lágrimas de alegria e cheio de um profundo reconhecimento a Deus!

Eu o segui desfrutando eu mesmo uma suprema felicidade e alegrando-me em sua luz. Ele chegou à porta da pobre família. “Deus terá tido piedade de nós?” perguntava a piedosa esposa a seu piedoso marido. ─ “Sim, ele terá piedade de nós, como nós tivemos tido piedade dos outros.” ─ Ouvindo essa resposta do marido, aquele que tinha orado encheu-se de alegria; abriu a porta e, sufocado por sua ternura, apenas pôde pronunciar estas palavras: “Sim ele terá piedade de vós, como vós mesmos tivestes piedade dos pobres; eis uma dádiva da misericórdia de Deus. O Senhor vê os justos e ouve as suas súplicas.”

Com que viva luz brilharam todos os assistentes, quando, depois de ter lido a cartinha, levantaram os olhos e os braços para o céu! Massas de Espíritos se apressaram a vir de todos os lados. Como nos alegramos! Como nos abraçamos!

Como todos louvamos a Deus e o bendizemos! Como todos nos tornamos mais perfeitos, mais amantes!

Tu brilhaste outra vez; eu pude e ousei chegar junto a ti; tu tinhas feito três coisas que me conferiam o direito de aproximar-me de ti e de te alegrar. Tinhas derramado lágrimas de vergonha por tua cólera; tinhas refletido, ficando seriamente enternecido pelos meios de poder dominar-te; sinceramente tinhas pedido perdão àquele a quem o teu comportamento havia ofendido e buscavas de que maneira poderias compensá-lo, proporcionando-lhe alguma satisfação. Essa preocupação restituiu a calma ao teu coração, a alegria aos teus olhos, a luz ao teu corpo.

Por este exemplo podes julgar se estamos sempre bem instruídos do que fazem os amigos que deixamos na Terra, e quanto nos interessamos por seu estado moral. Agora também deves compreender a solidariedade que existe entre o mundo visível e o mundo invisível, e que de vós depende proporcionar-nos alegrias ou aflições.

Oh! meu bem-amado, se pudesses compenetrar-te desta grande verdade, que um amor nobre e puro encontra em si mesmo sua mais bela recompensa; que os mais puros gozos, o gozo de Deus, não são senão o produto de um sentimento mais depurado, apressar-te-ias em te depurares de tudo o que é egoísmo.

De agora em diante, jamais poderei escrever-te sem voltar a este assunto. Nada tem preço sem o amor. Só ele possui o golpe de vista claro, justo, penetrante, para distinguir o que merece ser estudado, o que é eminentemente verdadeiro, divino, imperecível. Em cada ser mortal e imortal animado de um amor puro nós vemos, com um inexprimível sentimento de prazer, refletir-se o próprio Deus, como vedes o sol brilhar em cada gota de água pura. Todos os que amam, na Terra como no Céu, não fazem senão um pelo sentimento. É do grau do amor que depende o grau de nossa perfeição, é de nossa felicidade interior e exterior. É teu amor que regula tuas relações com os Espíritos que deixaram a Terra, tua comunicação com eles, a influência que podem exercer sobre ti e sua ligação íntima com o teu Espírito.

Escrevendo-te isto, um sentimento de previsão que jamais me engana, ensiname que tu te achas neste momento em excelente disposição moral, porquanto pensas numa obra de caridade. Cada uma de vossas ações, de vossos pensamentos, leva um cunho particular, instantaneamente compreendido e apreciado por todos os Espíritos desencarnados. Que Deus venha em teu auxílio.

Escrevi isto a 16 de dezembro de 1798.

Seria supérfluo ressaltar a importância destas cartas de Lavater, que por toda parte excitaram o mais vivo interesse. Elas atestam, de sua parte, não só o conhecimento dos princípios fundamentais do Espiritismo, mas uma justa apreciação de suas consequências morais. Apenas sobre alguns pontos ele parece ter tido ideias um pouco diferentes do que hoje sabemos, mas a causa dessas divergências, que aliás talvez se devam mais à forma do que ao fundo, está explicada na comunicação seguinte, por ele dada na Sociedade de Paris. Nós não as levantaremos, porque cada um as terá compreendido; o essencial era constatar que, muito antes do aparecimento oficial do Espiritismo, homens cuja alta inteligência não poderia ser posta em dúvida, dele tiveram a intuição. Se não empregaram a palavra, é que ela não existia.

Contudo, chamaremos a atenção sobre um ponto que poderia parecer estranho. É a teoria segundo a qual a felicidade dos Espíritos estaria subordinada à pureza dos sentimentos dos encarnados e achar-se-ia alterada pela mais leve imperfeição destes. Se assim fosse, considerando o que são os homens, não haveria Espíritos realmente felizes, e a felicidade verdadeira não existiria no outro mundo, como não existe na Terra. Os Espíritos devem sofrer tanto menos os malefícios dos homens pelo fato de sabê-los perfectíveis. Os homens imperfeitos são para eles como crianças cuja educação não está concluída e na qual eles têm a missão de trabalhar, eles que igualmente passaram pela fieira da imperfeição. Mas se deixarmos de lado o que o princípio desenvolvido nesta carta pode ter de muito absoluto, não poderemos deixar de reconhecer um senso muito profundo, uma admirável penetração das leis que regem as relações do mundo visível e do mundo invisível, e das nuanças que caracterizam o grau de adiantamento dos Espíritos encarnados ou desencarnados.

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