Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1869

Allan Kardec

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O avarento da rua do forno



O Petite Presse de 19 de novembro de 1868 transcreveu do jornal le Droit o fato seguinte:

“Numa miserável água-furtada da Rua do Four-Saint-Germain, vivia pobremente um indivíduo de certa idade, chamado P... Ele não recebia ninguém, e fazia sua própria comida, muito mais frugal que a de um anacoreta. Vestindo roupas sórdidas, ele dormia numa enxerga ainda mais sórdida. De magreza extrema, parecia ressecado pelas privações de todo gênero e era julgado em geral vítima da mais profunda pobreza.

“Entrementes, um cheiro fétido tinha começado a espalhar-se na casa. Aumentava de intensidade e acabou atingindo um pequeno restaurante do pavimento térreo, a ponto de a freguesia reclamar.

“Então procuraram diligentemente a causa do mau cheiro, e acabaram descobrindo que provinha do alojamento ocupado pelo tal P...

“Essa descoberta suscitou a lembrança de que ele há tempos não era visto e, temendo lhe houvesse acontecido uma desgraça, apressaram-se em avisar o comissário de polícia do bairro.

“Imediatamente a autoridade foi ao local e mandou um serralheiro abrir a porta. Mas assim que quiseram entrar no quarto, quase sufocaram e tiveram que afastar-se imediatamente. Só depois de ter deixado por algum tempo entrar o ar exterior é que puderam entrar e fazer constatações com as necessárias precauções.

“Um triste espetáculo se ofereceu ao comissário e ao médico que o acompanhava. Estendido sobre o leito, o corpo do tal P... encontrava-se em estado de completa putrefação. Ele estava coberto de varejeiras, e milhares de vermes roíam as carnes, que caíam aos pedaços.

“O estado de decomposição não permitiu reconhecer exatamente a causa da morte, que ocorrera há muito tempo, mas a ausência de qualquer traço de violência permitiu deduzir que fora devida a uma causa natural, como uma apoplexia ou uma congestão cerebral. Ademais, encontraram num móvel cerca de 35.000 francos, em dinheiro, ações, obrigações industriais e valores diversos.

“Depois das formalidades normais, apressaram-se em retirar os restos humanos e desinfetar o local. O dinheiro e os valores foram lacrados pela Justiça.”

Tendo sido evocado na Sociedade de Paris, esse homem deu a seguinte comunicação:

(Sociedade de Paris, 20 de novembro de 1868 – Médium: Sr. Rul) Perguntais por que me deixei morrer de fome, quando possuía um tesouro. 35.000 francos, com efeito, é uma fortuna! Ai de mim, senhores! Sois muito instruídos sobre o que se passa em torno de vós, para não compreenderdes que eu sofria provações, e meu fim diz claramente que fali. Com efeito, numa existência anterior eu tinha lutado com energia contra a pobreza que eu não tinha dominado senão por prodígios de atividade, de energia e de perseverança. Vinte vezes estive a ponto de me ver privado do fruto de meu trabalho. Assim, não fui terno para com os pobres que eu enxotava quando se apresentavam em minha casa. Eu reservava tudo quanto ganhava para a minha família, minha mulher e meus filhos.

Escolhi para provação, nesta nova existência, ser sóbrio, moderado nos gastos, e partilhar minha fortuna com os pobres, meus irmãos deserdados.

Mantive a palavra? Vedes o contrário, porque fui muito sóbrio, temperante, mais que temperante, mas não fui caridoso.

Meu fim infeliz não foi senão o começo de meus sofrimentos, mais duros, mais penosos neste momento, quando vejo com os olhos do Espírito. Assim, não teria tido a coragem de me apresentar a vós, se não me tivessem assegurado que sois bons e compassivos com a desgraça. Venho pedir que oreis por mim. Aliviai meus sofrimentos, vós que conheceis os meios de tornar o sofrimento menos pungente. Orai por vosso irmão que sofre e que deseja voltar a sofrer muito mais ainda.

Piedade, meu Deus! Piedade para o ser fraco que faliu; e vós, senhores, compaixão por vosso irmão, que se recomenda às vossas preces.


Suicídio por obsessão



Lê-se no Droit:



“O Sr. Jean-Baptiste Sadoux, fabricante de canoas em Joinville-le-Pont, percebeu ontem um jovem que, depois de ter vagado durante algum tempo sobre a ponte, subiu no parapeito e se atirou ao Marne. Imediatamente ele foi em seu socorro e, ao cabo de sete minutos, retirou-o. Mas a asfixia já era completa e todas as tentativas para reanimar aquele infeliz foram infrutíferas.

“Uma carta encontrada com ele permitiu que fosse reconhecido como o Sr. Paul D..., de vinte e dois anos, residente na Rua Sedaine, em Paris. Essa carta, dirigida pelo suicida ao seu pai, era extremamente tocante. Ele pedia perdão por abandoná-lo e dizia que há dois anos era dominado por uma ideia terrível, por uma irresistível vontade de se destruir. Acrescentava que lhe parecia ouvir fora da vida uma voz que o chamava sem descanso e, a despeito de todos os esforços, não podia impedir de ir para ela. Encontraram, também, no bolso do paletó, uma corda nova, na qual tinha sido feito um laço corredio. Depois do exame médico-legal, o corpo foi entregue à família.”

A obsessão aqui está bem evidente, e o que não está menos evidente é que o fato nada tem a ver com o Espiritismo, nova prova de que esse mal não é inerente à crença. Mas se o Espiritismo não tem nada a ver com este caso, só ele pode dar a sua explicação. Eis a instrução dada a respeito por um dos nossos Espíritos habituais, da qual ressalta que, malgrado o arrastamento a que o jovem cedeu para a sua infelicidade, ele não sucumbiu à fatalidade. Ele tinha o seu livre-arbítrio e, com mais vontade, poderia ter resistido. Se tivesse sido espírita, teria compreendido que a voz que o solicitava não poderia ser senão de um mau Espírito e as consequências terríveis de um instante de fraqueza.

(Paris, Grupo Desliens, 20 de dezembro de 1868 – Médium: Sr. Nivard) A voz dizia: Vem! Vem! Mas teria sido ineficaz essa voz do tentador, se a ação direta do Espírito não se tivesse feito sentir. O pobre suicida era chamado e impelido. Por quê? Seu passado era a causa da situação dolorosa em que se achava.

Ele apegava-se à vida e temia a morte. No entanto, nesse apelo incessante que ouvia, pergunto eu, ele encontrou força? Não, ele hauriu a fraqueza que o perdeu. Ele venceu os temores, porque esperava no fim encontrar do outro lado da vida o repouso que o lado de cá lhe negava. Ele se enganou, pois o repouso não veio. As trevas o cercam, a consciência lhe censura o ato de fraqueza e o Espírito que o arrastou gargalha ao seu redor e o criva de motejos constantes. O cego não o vê, mas escuta a voz que lhe repete: Vem! Vem! e que depois zomba de suas torturas.

A causa deste caso de obsessão está no passado, como acabo de dizer. O próprio obsessor foi impelido ao suicídio por esse que ele acaba de empurrar para o abismo. Era sua mulher na existência anterior, e tinha sofrido consideravelmente com o deboche e as brutalidades de seu marido. Muito fraca para aceitar a situação que lhe era dada, com resignação e coragem, buscou na morte um refúgio contra os seus males. Ela vingou-se depois, sabeis como. Entretanto, o ato desse infeliz não era fatal. Ele tinha aceito os riscos da tentação; ela era necessária ao seu adiantamento, porque só ela poderia fazer desaparecer a mancha que havia conspurcado sua existência anterior. Ele tinha aceito os seus riscos, com a esperança de ser mais forte, e se havia enganado: sucumbiu; recomeçará mais tarde; resistirá? Dele dependerá.

Rogai a Deus por ele, a fim de que lhe dê a calma e a resignação de que tanto necessita, a coragem e a força para não falir nas provas que tiver de suportar mais tarde.

LOUIS NIVARD.

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