Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

Voltar ao Menu
Não teríamos tomado a iniciativa do fato seguinte, mas não há motivo para nos abstermos, considerando-se que ele foi reproduzido em vários jornais, entre outros a Opinion Natianale e o Siècle de 22 de fevereiro de 1864, conforme o Bulletin Diplomatique.

“Uma carta remetida por pessoa bem informada revela que, recentemente, num conselho privado, onde estava sendo discutida a questão dinamarquesa, a rainha (Vitória) declarou que nada faria sem consultar o príncipe Alberto[1]. Com efeito, depois de ter-se recolhido por alguns instantes em seu gabinete, voltou dizendo que o príncipe se pronunciava contra a guerra. Esse fato, e outros semelhantes transpiraram e deram origem à ideia de que seria oportuno estabelecer uma regência.”

Tínhamos razão ao escrever que o Espiritismo tem adeptos até nos degraus dos tronos. Poderíamos ter dito: até nos tronos. Vê-se, porém, que os próprios soberanos não escapam à qualificação dada aos que acreditam nas comunicações de alémtúmulo. Tratados como loucos, os espíritas devem consolar-se por estarem em tão boa companhia. O contágio, portanto, é muito grande, pois sobe tanto!

Entre os príncipes estrangeiros sabemos de bom número que têm esta suposta fraqueza, pois alguns participam da Sociedade Espírita de Paris. Como querem que a ideia não penetre na Sociedade inteira, quando parte de todos os degraus da escala?

Por aí o senhor cura de Marmande pode ver que não há médiuns só entre engraxates.

O Journal de Poitiers, que relata o mesmo caso, o acompanha desta reflexão: “Cair assim no domínio dos Espíritos não é abandonar o domínio da realidade, o único que têm direito de conduzir o mundo?”

Até certo ponto concordamos com a opinião do jornal, mas de outro ponto de vista. Para ele os Espíritos não são realidades, porque, segundo certas pessoas, só há realidade no que se vê e se toca. Ora, assim, Deus não seria uma realidade e, contudo, quem ousaria dizer que ele não conduz o mundo, e que não há acontecimentos providenciais para levar a um determinado resultado? Então! Os Espíritos são instrumentos de sua vontade. Eles inspiram os homens e incitam-nos, malgrado seu, a fazer isto ou aquilo; a agir neste sentido e não naquele, e isto tanto nas grandes resoluções quanto nas circunstâncias da vida privada. Assim, a esse respeito, não somos da opinião do jornal.

Se os Espíritos inspiram de maneira oculta, é para deixar ao homem o livrearbítrio e a responsabilidade de seus atos. Se ele recebe a inspiração de um mau Espírito, pode estar certo de receber, ao mesmo tempo, a de um Espírito bom, pois Deus jamais deixa o homem sem defesa contra as más sugestões. Cabe-lhe pesar e decidir conforme a sua consciência.

Nas comunicações ostensivas por via mediúnica, o homem não deve mais abster-se de seu livre-arbítrio. Seria um erro regular cegamente todos os passos e movimentos pelo conselho dos Espíritos, porque existem aqueles que ainda podem ter as ideias e os preconceitos da vida. Só os Espíritos muito superiores disso estão isentos.

Os Espíritos dão seus conselhos, sua opinião. Em caso de dúvida, pode-se discutir com eles, como se fazia quando eles estavam vivos. Dessa maneira, pode-se avaliar a força de seus argumentos. Os Espíritos verdadeiramente bons a isso jamais se recusam. Os que repelem tal exame, que exigem submissão absoluta, provam que contam pouco com a justeza de suas razões para convencer e devem ser considerados suspeitos.

Em princípio, os Espíritos não nos vêm carregar em andadeiras. O objetivo de suas instruções é o de tornar-nos melhores, de dar a fé aos que não a têm, e não o de nos poupar o trabalho de pensar por nós mesmos.

Eis o que ignoram os que criticam as relações de além-túmulo. Eles acham-nas absurdas, porque as julgam conforme suas ideias, e não conforme a realidade, que não conhecem.

Também não se deve julgar as manifestações pelo abuso ou pelas falsas aplicações que delas possam fazer algumas pessoas, assim como não seria racional julgar a religião pelos maus sacerdotes. Ora, para saber se há boa ou má aplicação de uma coisa, é preciso conhecê-la, não superficialmente, mas a fundo. Se fordes a um concerto, para saber se a música é boa e se os músicos a executam bem, antes de tudo é preciso conhecer a música.

Isto pode servir de base para apreciar o fato de que se trata. Censurariam a rainha se ela tivesse dito: “Senhores, o caso é grave; permiti que eu me recolha um instante e peça a Deus que me inspire a resolução que devo tomar?” O príncipe não é Deus, é verdade, mas, como ela é piedosa, é provável que tenha pedido a Deus que inspirasse a resposta do príncipe, o que dá no mesmo. Ela o fez agir como intermediário, em razão da afeição que lhe tem.

As coisas podem ainda ter-se passado de outro modo. Se enquanto o príncipe estava vivo a rainha costumava nada fazer sem consultá-lo, morto ele, ela pede a sua opinião como se ele estivesse vivo, e não porque ele é um Espírito, porquanto, para ela, ele não morreu. Ele está sempre ao seu lado, como seu guia e conselheiro oficioso. Não há entre ela e ele senão um corpo a menos. Se o príncipe vivesse, ela teria feito o mesmo, portanto, nada mudou na sua maneira de agir.

Agora, é boa ou má a política do príncipe-Espírito? Não nos cabe examinar. O que deveríamos refutar é a opinião daqueles a quem parece bizarro, pueril, estúpido mesmo, que alguém de bom senso possa crer na realidade de quem não tem mais corpo, porque lhes agrada pensar que eles próprios, quando estiverem mortos, não serão mais absolutamente nada. A seus olhos a rainha não praticou um ato mais sensato do que se tivesse dito: “Senhores, vou interrogar minhas cartas, ou um astrólogo.”

Se esse fato não tem grandes consequências para a política, o mesmo não se dá do ponto de vista espírita, pela repercussão que teve. Certamente a rainha podia abster-se de dar o motivo de sua ausência e de dizer que tal era o conselho do príncipe. Dizê-lo numa circunstância tão solene era fazer um ato de certa forma público de crença nos Espíritos e em suas manifestações, e reconhecer-se médium. Ora, quando tal exemplo vem de uma cabeça coroada, isto pode bem encorajar a opinião dos que estão menos altamente colocados.

Não é possível deixar de admirar a fecundidade dos meios empregados pelos Espíritos para obrigar os incrédulos a falar do Espiritismo e a fazer a ideia penetrar em todas as camadas sociais.

Neste caso, é-lhes forçoso criticar com cuidado.



[1] Albert de Saxe-Coburgo-Gota, nascido em 26.08.1819 e falecido em 14.12.1861 havia sido consorte da Rainha Vitória e seu principal conselheiro em assuntos de Estado. (Nota do revisor)


TEXTOS RELACIONADOS

Mostrar itens relacionados

Utilizamos cookies para melhorar sua experiência. Saiba mais em nossa Política de Privacidade.