Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1859

Allan Kardec

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Morte de um Espírita

O Sr. J..., negociante do departamento de La Sarthe, falecido a 15 de julho de 1859, era, sob todos os pontos de vista, um homem de bem e de uma caridade sem limites. Tinha feito um estudo sério do Espiritismo e era um de seus fervorosos adeptos. Como assinante da Revista Espírita, estava em contato indireto conosco, sem que nos tivéssemos visto. Evocando-o, temos como objetivo não só corresponder ao desejo de seus parentes e amigos, como de lhe dar pessoalmente um testemunho de nossa simpatia e agradecer-lhe as gentilezas que ele dizia e pensava a nosso respeito. Além disso, era para nós motivo de estudo interessante, do ponto de vista da influência que pode ter o conhecimento aprofundado do Espiritismo sobre o estado da alma depois da morte.

1. ─ (Evocação).
─ Aqui estou há muito tempo.

2. ─ Jamais tive o prazer de ver-vos. Não obstante, vós me reconheceis?
─ Reconheço-vos muito bem, visto que frequentemente vos visitei e tive mais de uma conversa convosco, como Espírito, durante a minha vida.

OBSERVAÇÃO: Isto confirma o fato muito importante, do qual temos numerosos exemplos, das comunicações que entre si têm os homens, sem o saberem, durante a vida. Assim, durante o sono do corpo, os Espíritos viajam e se visitam reciprocamente. Despertando, conservam intuição das ideias que adquiriram nessas conversas ocultas, e cuja fonte ignoram. Desta maneira, temos durante a vida uma existência dupla: a corporal, que nos dá a vida de relação exterior, e a espírita, que nos dá a vida de relação oculta.

3. ─ Sois mais feliz do que na Terra?
─ E sois vós que me perguntais?

4. ─ Compreendo. Entretanto, desfrutáveis de uma fortuna honradamente adquirida, que vos proporcionava os prazeres da vida. Tínheis a estima e a consideração granjeadas pela vossa bondade e vossa beneficência. Poderíeis dizernos em que consiste a superioridade de vossa felicidade atual?
─ Consiste naturalmente na satisfação que me proporciona a lembrança do pouco bem que fiz, e na certeza do futuro que ele me promete. Além disso, não levais em conta a ausência das inquietudes e dificuldades da vida; dos sofrimentos corporais e de todos esses tormentos que nós criamos para satisfazer às necessidades do corpo? Durante a vida, a agitação, a ansiedade, as angústias incessantes, mesmo em meio à fortuna. Aqui a tranquilidade e o repouso. É a calma depois da tempestade.

5. ─ Seis semanas antes de morrer, dizíeis ter ainda que viver cinco anos. De onde vinha essa ilusão, quando tantas pessoas pressentem a morte próxima?
─ Um Espírito benevolente queria afastar da minha mente esse momento que, sem o confessar, eu tinha a fraqueza de temer, embora soubesse do futuro do Espírito.

6. ─ Havíeis mergulhado profundamente na ciência espírita. Poderíeis dizer-nos se, ao entrar no mundo dos Espíritos, encontrastes as coisas como as imagináveis?
─ Quase exatamente iguais, exceto por algumas questões de detalhes que eu havia compreendido mal.

7. ─ A leitura atenta que fazíeis da Revista Espírita e do Livro dos Espíritos vos ajudaram bastante nisso?
─ Incontestavelmente. Foi isso principalmente o que preparou a minha entrada na verdadeira vida.

8. ─ Sentistes algum espanto quando vos encontrastes no mundo dos Espíritos?
─ Impossível que fosse de outro modo. Contudo, espanto não é bem o termo. Melhor seria dizer admiração. Estais muito longe de conceber uma ideia do que significa isto!

OBSERVAÇÃO: Aquele que antes de mudar-se para uma região a estudou nos livros; identificou-se com os costumes dos seus habitantes; verificou sua topologia e seu aspecto por meio de desenhos, de plantas e de descrições, fica sem dúvida menos
surpreso do que outro que não tem nenhuma ideia disso. Entretanto, a realidade lhe mostra uma porção de detalhes que não tinha previsto e que o impressionam. Devese dar o mesmo no mundo dos Espíritos, cujas maravilhas não podemos compreender totalmente, porque há coisas que ultrapassam o nosso entendimento.

9. ─ Deixando o corpo, vistes e reconhecestes imediatamente alguns Espíritos junto a vós?
─ Sim, e Espíritos queridos.

10. ─ Que pensais agora do futuro do Espiritismo?
─ Um futuro mais belo do que pensais, apesar da vossa fé e do vosso desejo.

11. ─ Vossos conhecimentos relativos a assuntos espíritas sem dúvida vos permitirão responder com precisão a algumas perguntas. Poderíeis descrever claramente o que se passou convosco no momento em que o corpo deu o último suspiro e o vosso Espírito se achou livre?
─ Pessoalmente, acho muito difícil encontrar um meio de vos explicar de maneira diferente da que já foi feita, isto é, comparando a sensação que a gente experimenta ao despertar de um sono profundo. Esse despertar é mais ou menos lento e difícil, na razão direta da situação moral do Espírito, e nunca deixa de ser fortemente influenciado pelas circunstâncias que acompanham a morte.

OBSERVAÇÃO: Isto está de acordo com todas as observações feitas sobre o estado do Espírito no momento de separar-se do corpo. Vimos sempre as circunstâncias morais e materiais que acompanham a morte reagirem poderosamente sobre o estado do Espírito, nos primeiros momentos.

12. ─ Vosso Espírito conservou a consciência de sua existência até o último momento e a recobrou imediatamente? Houve um momento de falta de lucidez? Qual foi a sua duração?
─ Houve um instante de perturbação, quase que imperceptível para mim.

13. ─ O momento de despertar teve algo de penoso?
─ Não, pelo contrário. Eu me sentia, se assim posso falar, alegre e disposto, como se respirasse ar puro ao sair de uma sala cheia de fumaça.

OBSERVAÇÃO: Comparação engenhosa, que só pode ser a pura expressão da verdade.

14. ─ Lembrai-vos da existência que tivestes antes desta que acabais de deixar? Como foi ela?
─ Lembro-me dela da melhor forma possível. Eu era um bom criado junto de um bom senhor que, em companhia de outros, me recebeu, à minha entrada neste mundo bem-aventurado.

15. ─ Creio que o vosso irmão se ocupa menos das questões espíritas do que vos ocupáveis.
─ Sim, eu farei alguma coisa para que ele tenha mais interesse, caso me seja permitido. Se ele soubesse o que a gente ganha com isso, dar-lhe-ia mais importância.

16. ─ O vosso irmão pediu ao Sr. D... que me comunicasse a vossa morte. Ambos esperam ansiosos o resultado de nossa conversa. Ficarão, entretanto, mais sensibilizados com uma mensagem direta de vossa parte, se quiserdes confiar-me algumas palavras para eles ou para outras pessoas que sentem a vossa falta.
─ Por vosso intermédio dir-lhes-ei o que eu mesmo teria dito, mas receio muito não ter mais influência junto a alguns deles, como outrora. Entretanto, em meu nome e no de seus amigos, que bem vejo, concito-os a refletir e estudar seriamente esta grave questão do Espiritismo, ainda que fosse tão somente pelo auxílio que ela traz para passar este momento tão temido pela maior parte das pessoas, e tão pouco temível para aquele que se preparou previamente pelo estudo do futuro e pela prática
do bem. Dizei-lhes que sempre estou com eles, em seu meio; que os vejo, e que serei feliz se suas disposições lhes puderem assegurar, no mundo onde me encontro, um lugar do qual não terão senão que se felicitarem. Dizei-o sobretudo ao meu irmão,
cuja felicidade é o meu mais profundo desejo, do qual não me esqueço, embora eu seja mais feliz que ele.

17. ─ A simpatia que tivestes a bondade de me testemunhar em vida, mesmo sem me conhecer, faz-me esperar que nos encontremos facilmente quando eu estiver em vosso meio. Até lá, serei feliz se quiserdes assistir-me nos trabalhos que me resta fazer para concluir a minha tarefa.
─ Julgais-me com muita benevolência. Não obstante, convencei-vos de que, se vos puder ser de alguma utilidade, não deixarei de fazê-lo, talvez mesmo sem que o suspeiteis.

18. ─ Agradecemos por terdes gentilmente atendido ao nosso apelo, e pelas instrutivas explicações que nos destes.
─ À vossa disposição. Estarei muitas vezes convosco.

OBSERVAÇÃO: Esta comunicação é incontestavelmente uma das que descrevem a vida espírita com a maior clareza. Oferece um poderoso ensino relativamente à influência que as ideias espíritas exercem sobre o nosso estado depois da morte.
Esta conversa parece haver deixado algo a desejar ao amigo que nos participou a morte do Sr. J..., pois nos disse: “Ele não conservou na linguagem o cunho de originalidade que tinha conosco. Manteve uma reserva que não observava com pessoa alguma. Seu estilo incorreto, brusco, revelava inspiração; ousava tudo; vencia quem quer que formulasse uma objeção às suas crenças; reduzia-nos a nada para nos converter. Em seu perfil psicológico não revela nenhuma particularidade das numerosas relações que tinha com uma porção de pessoas que frequentava. Todos nós gostaríamos de nos vermos citados por ele, não para satisfazer nossa curiosidade, mas para nossa instrução. Gostaríamos que nos tivesse falado claramente de algumas ideias por nós emitidas em sua presença, nas nossas conversas. A mim, pessoalmente, poderia ter dito se eu tinha ou não tinha razão de insistir em tal ou qual consideração; se aquilo que eu lhe havia dito era verdadeiro ou falso. Absolutamente não falou de sua irmã, ainda viva e tão digna de interesse”.
Depois desta carta evocamos novamente o Sr. J..., e lhe dirigimos as perguntas seguintes:

19. ─ Tendes conhecimento da carta que recebi em resposta à remessa da vossa evocação?
─ Sim, vi quando a escreviam.

20. ─ Teríeis a bondade de dar algumas explicações sobre certas passagens dessa carta e, como bem compreendeis, com um fim instrutivo, unicamente para me fornecer elementos para uma resposta?
─ Se o considerais útil, sim.

21. ─ Acham estranho que a vossa linguagem não tenha conservado o cunho da originalidade. Parece que em vida éreis esmagador na discussão.
─ Sim, mas o Céu e a Terra são muito diferentes e aqui eu encontrei mestres.
Que quereis? Eles me impacientavam com suas objeções absurdas. Eu lhes mostrava o Sol e não queriam vê-lo. Como conservar o sangue frio? Aqui não há necessidade de discutir; todos nos entendemos.

22. ─ Esses senhores admiram-se de que não os tenhais interpelado nominalmente para refutá-los, como fazíeis em vida.
─ Que se admirem! Eu os espero. Quando vierem juntar-se a mim, verão qual de nós está com a razão. Será preciso que venham para este lado, quer queiram, quer não queiram, e uns mais cedo do que pensam. Sua jactância cairá como a poeira abatida pela chuva. Sua bazófia... (Aqui o Espírito para e se recusa a concluir a frase).

23. ─ Eles inferem que não lhes demonstrais todo o interesse que tinham direito a esperar de vós.
─ Eu lhes desejo o bem, mas nada farei contra sua própria vontade.

24. ─ Também se admiram de que nada tenhais dito relativamente à vossa irmã.
─ Por acaso eles estão entre mim e ela?

25. ─ O Sr. B... gostaria que tivésseis dito algo que vos contou na intimidade. Para ele e para outros, isto teria sido um meio de esclarecimento.
─ Qual a vantagem de repetir o que ele sabe? Pensa que não tenho outra coisa a fazer? Não têm eles os mesmos meios de esclarecimento que eu tive? Que os aproveitem. Garanto-lhes que se sentirão bem. Quanto a mim, dou graças aos céus por me haverem enviado a luz que me franqueou o caminho da felicidade.

26. ─ Mas é esta luz que eles desejam e que seriam felizes se a recebessem de vós.
─ A luz brilha para todo mundo. Cego é aquele que não quer ver. Esse cairá no precipício e amaldiçoará a sua cegueira.

27. ─ Vossa linguagem me parece marcada por grande severidade.
─ Não me acharam eles muito brando?

28. ─ Nós vos agradecemos por terdes vindo e pelos esclarecimentos que nos destes.
─ Sempre ao vosso serviço, pois sei que é para o bem.

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