Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

Allan Kardec

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Um camponês filósofo

Decididamente, o Espiritismo invade o campo. Os Espíritos querem provar sua existência tomando seus instrumentos em toda parte, mesmo fora do círculo dos adeptos, o que destrói toda suposição de conivência. Acabamos de ver a Doutrina implantada numa pequena aldeia de Aube, entre simples cultivadores, por uma manifestação espontânea. Eis um fato ainda mais admirável, sob outro ponto de vista. Nosso colega, Sr. Delanne, escreve-nos o que segue:

“...Durante as poucas horas que passei na aldeia onde educam o meu filho, um vinhateiro me deu duas brochuras que havia publicado sob este título: Ideias filosóficas naturais e espontâneas sobre a existência em geral, a partir do princípio absoluto até o fim dos fins, da causa primeira até o infinito, por Chevelle pai, de Joinville (Haute-Marne): A primeira tem por objeto Deus, os anjos, a alma do homem, a alma animal ou instintiva; a segunda: as forças físicas, os elementos, a organização, o movimento[1].

“Conforme esse título pomposo e os graves assuntos que abarca, pensareis tratar-se de um homem que se debruçou sobre os livros a vida inteira. Desenganaivos, pois esse filósofo metafísico é um humilde artesão, um verdadeiro filósofo de tamancos, pois vai, pelas aldeias, vender legumes e outros produtos agrícolas.” Eis algumas passagens de seu prefácio:

“Empreendi esta obra porque pensei que seria de alguma utilidade para o público. O homem se deve aos seus semelhantes; sua condição não é viver isolado, e a Sociedade tem direito de reclamar de cada indivíduo o compartilhamento de seus conhecimentos; o egoísmo é um vício intolerável.

“A obra é inteiramente minha; não fui ajudado nem secundado por ninguém; nada copiei de ninguém; é o fruto das meditações de toda a minha vida... Numerosas dificuldades se opuseram à execução de meus propósitos, mas não as dissimulei. Para mim, a miséria era a pior de todas; ela me impedia de agir, não me deixando tempo livre; sempre a suportei sem me lamentar; eu tinha aprendido o segredo de viver feliz sem fortuna, e esse segredo é sempre meu maior recurso.

“...Dei a conhecer as minhas ideias, porque as escrevi à medida que me vieram, naturalmente e espontaneamente, à medida que me vieram pela reflexão e pela meditação.

“...Em filosofia não se demonstram todas as existências por cálculos matemáticos; não medimos os Espíritos com um metro e não os observamos no microscópio.

“...Não se deve esperar encontrar em meu livro um estilo elevado, extremamente brilhante. Não fiz cursos; apenas fui à escola de minha aldeia. Quando a gente tinha aprendido as preces em latim e recitava bem o catecismo, era considerado bastante instruído.

“...Naqueles tempos, éramos considerados extremamente sábios quando sabíamos fazer as quatro operações; vinham procurar-nos para medir os campos. Aos dez anos eu era o primeiro da escola e meu velho pai sentia-se glorioso ao ver que me vinham procurar para definir o lugar onde deviam plantar um marco, ou para escrever um bilhete ou um recibo.

“Tenho, pois, o direito de pedir desculpas aos leitores, pela trivialidade de minha linguagem. Não aprendi as regras de retórica e creio que o título que convém à minha obra é: Ideias naturais.

“Íamos à escola desde o dia de Todos os Santos até a Páscoa e ficávamos em férias da Páscoa até o dia de Todos os Santos. Mas como meu pai, por mais pobre que fosse, não tinha receio de gastar alguns vinténs para me comprar livros, eu aprendia muito mais com eles nas férias, e deles não me esquecia nos meses de aula.”

Eis agora alguns fragmentos do capítulo sobre Deus:

“Deus é o único que pode dizer: Eu sou aquele que é. Ele é um e é tudo; tudo existe dele, nele e por ele, e nada pode existir sem ele e fora dele. Ele é uno e não obstante produziu o múltiplo e o divisível, um e outro ao infinito... Se eu pudesse bem definir Deus, eu seria deus, mas não pode haver dois.

“Deus é um todo infinito, indivisível, eterno, imutável; não tem limites no pequeno nem no grande... Um minuto e cem mil anos ou cem mil séculos são a mesma coisa para Deus; a eternidade não admite partilha; para ele não há passado nem futuro, é um eterno presente; para Deus, o passado ainda é e o futuro já é; ele vê todos os tempos de uma vez; não há ontem nem amanhã, e ele disse, falando de seu filho: Eu vos gerei hoje.

“A eternidade não se mede, como não se mede o infinito do espaço; são dois abismos onde só podemos chegar pela abstração e aí nos perderíamos se quiséssemos penetrá-los; são florestas virgens sem trilhas. Em lá chegando, somos forçados a parar.

“Deus não pode dispensar-se de criar. Ele seria apenas um Deus sem ação se não criasse, e sua glória seria apenas para si próprio. Monotonia impossível. Deus cria eternamente e o começo da criação, tomado no infinito, deve continuar ao infinito.

“...Era preciso que ele criasse inteligências livres, porque, qual seria a existência dos seres que pensam, se lhes não fosse permitido pensar livremente? Onde estaria a glória de Deus se suas criaturas não fossem livres para emitir uma opinião sobre ele? Seria o mesmo que ter ficado só; a adoração que elas lhe teriam rendido não teria passado de uma quimera, uma comédia dirigida por ele e para ele. Ele teria sido o único ator e o único espectador.

“Para a glória de Deus, então, era uma necessidade absoluta que as inteligências fossem criadas absolutamente livres, que tivessem o direito de julgar seu autor, de se conduzir, no bem ou no mal, como quisessem. Era preciso que o mal fosse permitido para que o bem existisse; é impossível que um seja conhecido sem que se veja o outro.

“Mas, ao mesmo tempo que Deus dá o livre-arbítrio às inteligências, também lhes dá esse foro íntimo, esse sentimento intelectual de sua liberdade de pensar, esse ato do espírito livre que chamamos de consciência, tribunal individual que adverte cada existência livre do valor de sua ação. Ninguém faz o mal sem o saber; só a vontade faz o pecado.

“Também temos razões para presumir que os Espíritos ou anjos têm qualquer participação no governo universal, pois foi recebido como dogma de fé que os homens são guardados pelos anjos e que cada um de nós tem seu anjo de guarda.

“As inteligências, ou Espíritos desprendidos da matéria, portanto, podem ter, às vezes, influência sobre o espírito do homem. Quantas pessoas tiveram revelações que se realizaram: testemunham Joana d’Arc e tantas outras de que falam os livros de história que li e que podemos encontrar. Mas a memória não me basta para lhes citar as passagens, e não necessito buscar alhures, senão em mim mesmo.

“Quando minha irmã mais velha morreu de cólera em Midrevay (Vosges), eu não tinha ouvido falar na existência da cólera naquele momento em parte alguma. Não tinha a menor ideia de que minha irmã estivesse doente; eu a tinha visto mais saudável que nunca e, assim, não tinha qualquer motivo para me preocupar com ela. Eu a vi em sonho vir dizer-me, em minha casa em Joinville: ‘Nosso José, venho dizerte que morri; sabes que sempre te amei muito e quis, eu mesma, trazer-te a notícia de minha volta ao outro mundo.’ No dia seguinte o carteiro me trouxe uma carta anunciando a morte de minha irmã. “Recebendo a carta tarjada de negro, eu disse a minha mulher: ‘Sabes do sonho que te contei ontem, e talvez aqui esteja a realidade.’ Eu não me enganava.

“Tive várias vezes, não dormindo, mas bem desperto, trabalhando, visões às quais não dei atenção senão quando se realizaram, mesmo muito tempo depois. Isto me aconteceu umas três ou quatro vezes no curso de minha vida; delas só me lembro vagamente, mas tenho certeza. Não sou o único que tive revelações mentais; outros provarão que tenho razão, e isso talvez já tenha sido provado.

“A alma animal não pode ser senão individual e, por consequência, indecomponível, portanto, a alma animal não morre. Já pensaram nela antes de mim, e foi isto que deu lugar à doutrina da metempsicose. Se existe a metempsicose, não poderia ser senão entre os indivíduos da mesma espécie: a alma vital ou animal de um mamífero não pode passar para uma árvore.

“Pelo que é a inteligência humana, é impossível que ela passe ao corpo animal. Ela aí não poderia agir. A constituição física do animal não pode servir de habitação à inteligência humana, embora tenham assegurado que demônios se uniram e possuíram animais. Não posso crer que em semelhantes organizações eles possam fazer algo de razoável; não lhes seria possível falar; eles não poderiam aniquilar o instinto, que agiria sempre, bom grado, malgrado; é uma das leis estabelecidas pelo Criador; elas seriam indignas dele se fosse possível derrogá-las, se fosse possível mudá-las. Os feixes de nervos, ou, como dissemos acima, as estações telegráficas dessa espécie, não podem ser dirigidas pela inteligência.

“Nestes últimos tempos tem-se falado muito do Espiritismo; algumas pessoas me dizem que este capítulo tem muitas relações com ele, mas se assim é, é por puro acaso, pois é uma obra que jamais li e da qual jamais ouvi dizer uma só frase.”


Eis agora as reflexões do autor sobre a Criação:

“Todos os geólogos, todos os naturalistas estão de acordo que os dias de Deus não eram como os nossos, que são regulados pelo Sol. Com efeito, os dias de Deus na Criação não podiam ser regulados pelo Sol, porque, segundo os textos das Escrituras Sagradas, o Sol ainda não tinha sido criado, ou não aparecia; daí a palavra que nas Santas Escrituras, na linguagem em que elas foram escritas, significa dias como significa tempo. Assim, o erro bem pode ser dos tradutores, que poderiam ter dito em seis tempos, em vez de em seis dias; além disto, por que quereríamos fazer os dias de Deus tão curtos quanto os nossos, se ele é eterno?

“Não que eu queira dizer que Deus não pudesse ter criado o mundo em seis dias de vinte e quatro horas cada um, quando cada um desses dias valesse centenas de milhares dos nossos anos. Se eu quisesse entendê-lo assim, estaria em contradição comigo mesmo, porque, em meu primeiro volume, eu disse que um minuto, cem mil anos ou cem mil séculos são a mesma coisa para Deus.

“Mesmo que Deus não tivesse utilizado senão um dia para cada criação indicada na Gênese, entre cada um desses dias talvez houvesse milhões de anos e mesmo séculos.

“Quando examinamos as camadas da Terra e como foram formadas, chamamos essas diferentes revoluções de épocas. As provas físicas aí estão, pois esses depósitos não ocorreram em vinte e quatro horas.

“Querem tomar muito ao pé da letra o texto das Sagradas Escrituras; elas são verdadeiras, mas é preciso saber compreendê-la. Não se trata de fazer como aqueles israelitas que se deixariam enforcar, não ousando defender-se porque era dia de sábado; se me quisessem matar num domingo, eu não esperaria a segunda-feira para me defender. É apenas para nós que a semana tem sete dias; Deus não tem senão um dia, e esse dia não tem começo nem fim. Para o nosso bem, ele quer que repousemos um dia por semana, mas ele não repousa, ele nunca não dorme, sua ação é incessante.

“Nossos dias não passam do aparecimento e o desaparecimento do outro que nos ilumina. Quando o Sol se põe para nós, levanta-se para outros povos. Em todas as horas do dia ou da noite ele se levanta, brilha no seu zênite ou se deita. E quando as neves, os gelos e a garoa nos fazem ficar ao pé do fogo, há outros povos que colhem flores e frutas. E depois, não existe apenas um mundo, apenas um Sol[2]; todas as estrelas que vemos são sóis que clareiam mundos como o nosso, e talvez mais perfeitos que o nosso. Deus é o autor de todos esses mundos e de muitos outros que não vemos; portanto, os seis dias da criação são seis épocas que duraram mais ou menos tempo, e que foram chamados dias para se porem ao alcance de nossa maneira de ver.”

Lemos com atenção as duas brochuras do pai Chevelle, e certamente deveríamos contradizê-lo em vários pontos, mas as citações que acabamos de fazer não deixam de revelar ideias de alto alcance filosófico e que não são desprovidas de um certo caráter de originalidade. Sua obra é uma pequena enciclopédia, porque ele ali trata um pouco de tudo, mesmo de coisas usuais.

Ele anuncia para mais tarde um Manual do Herborista Médico, ou Tratamento das doenças pelo emprego de plantas medicinais indígenas.

De onde lhe vêm todas essas ideias? Sem dúvida ele leu: isto é evidente, mas sua posição não lhe permitia ler muito e, aliás, era-lhe necessária uma aptidão especial para aproveitar essas leituras e tratar de assuntos tão abstratos. Vimos poetas naturais saírem da classe operária, mas é mais raro vermos saírem metafísicos sem estudos prévios, e ainda menos da classe dos camponeses. O pai Chevelle apresenta, no seu gênero, um fenômeno análogo ao desses pastores calculistas que venceram a Ciência. Não está aí um sério assunto de estudo? São fatos. Ora, como todo efeito tem uma causa, os sábios procuraram esta causa? Não, porque teria sido preciso sondar as profundezas da alma. Mas, e os filósofos espiritualistas? Falta-lhes a única chave que lhes podia dar a solução.

A esta pergunta, o ceticismo responde: Bizarria da Natureza; resultado da organização cerebral. O Espiritismo diz: Inteligências largamente desenvolvidas em existências anteriores e que, nada tendo perdido do que aprenderam, se refletem na existência atual, servindo essa aquisição de base a novas aquisições. Mas, por que essas inteligências, que devem ter brilhado numa esfera social elevada, estão hoje relegadas às classes mais inferiores? Outro problema não menos insolúvel sem a chave fornecida pelo Espiritismo. Ele diz que são provas ou expiações voluntárias escolhidas por essas mesmas inteligências que, em vista de seu adiantamento moral, quiseram nascer num meio ínfimo, seja por humildade, seja para adquirir conhecimentos práticos que lhes serão proveitosos em outra existência. A Providência permite que assim seja para sua própria instrução e para a dos homens, pondo estes no caminho da origem das faculdades pela pluralidade das existências.

Tendo sido relatados estes fatos na Sociedade Espírita de Paris, deram lugar à seguinte comunicação:


(Sociedade de Paris, 10 de novembro de 1865. ─ Médium: Sra. Breul.

Meus caros amigos, na leitura feita por vosso presidente, de diversos fatos relatados por vosso irmão Delanne, vistes que um notável trabalho filosófico foi posto à luz por um simples campônio dos Vosges. Não é aqui o lugar para constatar quantos prodígios se realizam neste momento para chocar os incrédulos e os sábios do mundo; para confundir esses homens que julgam ter o monopólio da Ciência e nada querem admitir fora de suas estreitas concepções, limitadas pela matéria?

Sim, neste tempo de preparação para a revolução humanitária que os Espíritos do Senhor devem realizar, pode-se, cada vez mais, reconhecer a verdade destas palavras do Cristo, que os homens pouco compreenderam: “Eu vos dou graças, meu Pai, por terdes ocultado essas coisas aos sábios e poderosos e por tê-las revelado aos humildes e aos pobres de Espírito.”

Quando digo sábios, não falo desses homens modestos que, infatigáveis pioneiros da Ciência, fazem a Humanidade avançar, desvelando-lhe as maravilhas que revelam a bondade e o poder do Criador, mas falo daqueles que, enfatuados de seu saber, acreditam simplesmente que não pode existir aquilo que eles não descobriram, patrocinaram e publicaram. Esses serão castigados em seu orgulho, e Deus já permite que sejam confundidos pela superioridade dos trabalhos intelectuais que saem da pena de homens que estão longe de usar o barrete de doutor.

Como ao tempo do Cristo, que quis honrar e erguer o trabalhador escolhendo nascer entre artífices, os anjos do Senhor agora recrutam seus auxiliares entre os corações simples e honestos e entre os homens de boa vontade que exercem as mais humildes profissões.

Compreendei, pois, amigos, que o orgulho é o maior inimigo do vosso adiantamento, e que a humildade e a caridade são as únicas virtudes que agradam a Deus e atraem para o homem esses divinos eflúvios que o ajudam a progredir e a dele aproximar-se.

LUÍS DE FRANÇA


[1] Duas brochuras grandes in-12; preço 1 franco cada, com o autor, em Joinville (Haute-Marne); em Bar-le-Duc, com Numa Rolin. O autor anuncia que completará o trabalho com cinco outras brochuras, que farão, ao todo, um volume.


[2] Na versão francesa: Só existe um mundo, um Sol, evidente falha no texto original. (Nota do Revisor)


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