Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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Já tínhamos ouvido falar de certos fenômenos espíritas que em 1852 haviam causado enorme celeuma na Baviera renana, nas cercanias de Spira; sabíamos até que havia sido publicada uma brochura em alemão, com um relato autêntico. Depois de longas e infrutíferas buscas, uma senhora, nossa assinante da Alsácia, demonstrando grande interesse e perseverança, pelo que lhe somos imensamente agradecidos, conseguiu um exemplar daquela brochura e no-la ofereceu.

Damos aqui a sua tradução in extenso, esperando seja lida com tanto maior interesse quanto mais uma vez vem provar que fatos desse gênero são de todos os tempos e lugares, desde que estes ocorreram numa época em que apenas se começava a falar em Espíritos.



PROÊMIO

Há vários meses um acontecimento singular constitui o assunto de todas as conversas em nossa cidade e suas imediações. Referimo-nos ao Batedor, como é chamado, da casa do alfaiate Pedro Sänger.

Até aqui abstivemo-nos de qualquer relato em nossa folha ─ o Jornal de Bergzabern ─ das manifestações que desde 1.º de janeiro de 1852 se produzem naquela casa. Como, porém, chamaram a atenção geral a tal ponto que as autoridades se sentiram no dever de pedir ao Dr. Bentner uma explicação para o caso e o Dr. Dupping, de Spira, chegou a ir ao local para observar os fatos, não nos podemos por mais tempo furtar ao dever de lhes dar publicidade.

Sentir-nos-íamos muito embaraçados se os leitores esperassem de nós um pronunciamento sobre a questão: deixamos essa tarefa àqueles que, pela direção de seus estudos e por sua posição, estão mais aptos a julgar, o que farão sem maiores dificuldades, se conseguirem descobrir a causa daqueles efeitos.

Quanto a nós, limitar-nos-emos ao simples relato dos fatos, principalmente daqueles que testemunhamos ou que ouvimos de pessoas dignas de fé. O leitor que forme a sua opinião.

F. A. Blanck Redator do Jornal de Bergzabern.

Maio de 1852.

A 1.º de janeiro deste ano, em Bergzabern, na casa em que residia, e no quarto vizinho à sala de estar, a família de Pedro Sänger ouviu um como martelar, que começava por golpes surdos e como se viessem de longe, e que se tornavam progressivamente mais fortes e distintos. Esses golpes pareciam desferidos na parede, junto à qual se achava o leito de sua filha de doze anos de idade.

Habitualmente, o ruído era ouvido entre nove e meia e dez e meia. A princípio o casal não ligou importância; como, porém, essa singularidade se repetisse todas as noites, pensaram que viesse da casa vizinha, onde talvez um doente se distraísse tamborilando na parede. Logo, entretanto, se convenceram de que não havia tal doente, nem ele poderia ser a causa do ruído. Foi revolvido o chão do quarto; a parede foi derrubada, mas tudo sem resultado. A cama foi mudada para o lado oposto do quarto: então ─ coisa admirável ─ o ruído mudou de lugar e era percebido assim que a menina dormia.

Era claro que de algum modo a garota participava da manifestação daquele ruído. Depois das inúteis pesquisas da polícia, começou-se a pensar que o fato deveria ser atribuído a uma doença da criança ou a uma particularidade de sua conformação. Entretanto, até agora nada veio confirmar tal suposição. É ainda um enigma para os médicos.

Com a espera, a coisa se desenvolveu: o ruído prolongou-se por mais de uma hora e os golpes eram vibrados com mais força. A menina mudou de cama e de quarto, mas o batedor se manifestou nesse outro quarto; debaixo da cama; na cama e na parede. Os golpes não eram idênticos: ora mais fortes, ora mais fracos e isolados, ora, enfim, sucedendo-se rapidamente e seguindo o ritmo das marchas militares e das danças.

A menina ocupava desde alguns dias o quarto mencionado, quando notaram que, durante o seu sono, ela emitia palavras curtas e incoerentes. As palavras logo se tornaram mais distintas e mais inteligíveis; parecia que a criança falava com outra pessoa sobre a qual ela tinha autoridade. Entre os fatos que diariamente se produziam, o autor desta brochura relata um, do qual foi testemunha:

A criança achava-se na cama, deitada sobre o lado esquerdo. Apenas adormecida, os golpes começaram e assim começou ela a falar: “Você, você! Bata uma marcha!” E o batedor marcou uma que se parecia muito com uma marcha bávara. À ordem de “alto!” dada pela menina, o batedor parou. Então ela ordenou: “Bata três, seis, nove vezes”. O batedor executou a ordem. A uma nova ordem de bater 19 golpes, ouviram-se 20 batidas, ao que retorquiu a menina adormecida: “Não está certo; foram 20 batidas”. Logo foi possível contar 19 golpes. A seguir ela pediu 30 pancadas e as 30 foram ouvidas. À ordem de 100 pancadas só foi possível contar até 40, tão rápidos eram os golpes. Soado o último golpe a menina disse: “Muito bem! Agora 110”. Então só nos foi possível contar até cerca de 50. Ao último golpe disse a dorminhoca: “Não está certo. Você deu apenas 106”; e logo se fizeram ouvir as 4 pancadas para completar as 110. Depois ela pediu: “Mil!” Foram batidas apenas 15. “Ora, vamos!” O batedor marcou ainda 5 golpes e parou.

Então os assistentes tiveram a ideia de dar ordens diretamente ao batedor, o qual as executou. Parava quando recebia a ordem de “Alto! Silêncio! Basta!” Depois, por si mesmo e sem comando, recomeçava a bater. Um dos assistentes disse, em voz baixa, num canto do quarto, que queria comandar apenas por pensamento, para que fossem dadas 6 batidas. Então o experimentador postou-se junto ao leito e não disse uma só palavra: foram ouvidas as 6 pancadas. Ainda por pensamento foram pedidas 4 e os 4 golpes foram ouvidos. A mesma experiência foi tentada por outras pessoas, mas nem sempre deu bom resultado.

Em breve a menina espreguiçou-se, afastou as cobertas e levantou-se.

Quando lhe perguntaram o que havia acontecido, respondeu que tinha visto um homem grande e mal-encarado, junto a seu leito, e que lhe apertava os joelhos. Acrescentou que sentia dor nos joelhos quando o homem batia. Ela adormeceu novamente e as manifestações prosseguiram até que o relógio bateu onze horas. De repente o batedor parou, a menina entrou em sono tranquilo, reconhecido pela regularidade da respiração e naquela noite nada mais foi ouvido.

Observamos que o batedor obedecia à ordem de marcar marchas militares. Várias pessoas afirmaram que quando se lhe pedia uma marcha russa, austríaca ou francesa, ela era marcada com muita exatidão.

A 25 de fevereiro, estando adormecida, a menina disse: “Agora você não quer mais bater; quer arranhar. Está bem! Quero ver como você fará isso.” Com efeito, no dia seguinte, 26, em vez dos golpes ouvia-se um arranhar que parecia vir da cama e que se manifestou até hoje. As batidas se misturaram à raspagem, ora alternadas, ora simultaneamente, de tal modo que nas árias de marcha ou de dança a raspagem marcava os tempos fortes e a batida os tempos fracos. Conforme os pedidos, a hora do dia ou a idade das pessoas eram indicadas por golpes secos ou pela raspagem. Em relação à idade das pessoas, às vezes havia erros, logo corrigidos na segunda ou terceira tentativa, desde que se dissesse que o número tinha sido marcado erradamente. Algumas vezes, em lugar de dar a idade pedida, o batedor executava uma marcha.

Dia a dia a linguagem da criança, durante o sono, tornava-se mais perfeita. Aquilo que a princípio não passava de simples palavras ou de ordens rápidas ao batedor, transformou-se, com o tempo, numa conversa encadeada com os pais. Assim, um dia se entreteve com a irmã mais velha sobre assuntos religiosos, num tom de exortação e de ensino, dizendo-lhe que ela devia ir à missa, fazer as preces todos os dias e mostrar submissão e obediência aos pais. À noite retomou o mesmo assunto. Em seus ensinamentos, nada havia de teológico, mas apenas algumas daquelas noções que se aprendem na escola.

Antes dessas conversas ouviam-se durante uma hora, pelo menos, pancadas e arranhões, não só durante o sono da menina, mas até em seu estado de vigília. Vimola comer e beber enquanto as batidas e raspagens eram ouvidas, do mesmo modo que, estando acordada, tínhamos ouvido a transmissão de ordens ao batedor, as quais foram todas executadas.

Na noite de sábado, 6 de março, várias pessoas se reuniram em casa dos Sänger, pois estando desperta a menina, havia predito durante o dia que o batedor apareceria às nove horas da noite. Ao bater essa hora, quatro golpes tão violentos foram desferidos na parede que os assistentes se assustaram. Logo, e pela primeira vez, as batidas foram dadas na madeira da cama e exteriormente. O leito foi todo abalado. Esses golpes se manifestaram de todos os lados da cama, ora num, ora noutro lugar. Pancadas e arranhões alternavam-se. A uma ordem da menina e das pessoas presentes, ora os golpes se ouviam no interior da cama, ora externamente. De repente o leito levantou-se em sentidos diferentes, enquanto os golpes eram desferidos com força. Mais de cinco pessoas em vão tentaram repor o leito no lugar, e quando desistiram da tentativa, ele ainda se balançou por alguns instantes, depois do que tomou a sua posição natural. Este fato já havia ocorrido uma vez, antes dessa manifestação pública.

Todas as noites a menina fazia uma espécie de discurso, de que falaremos de modo sucinto.

Antes de mais nada, é preciso notar que ela, assim que baixava a cabeça, logo adormecia e começavam os golpes e as arranhaduras. Com as batidas ela gemia, agitava as pernas e parecia sentir-se mal. Já o mesmo não acontecia com as raspagens. Chegado o momento de falar, a menina deitava-se em decúbito dorsal, o rosto tornava-se pálido, assim como as mãos e os braços. Ela acenava com a mão direita e dizia: “Vamos! Venha para perto de minha cama e junte as mãos. Vou lhe falar do Salvador do mundo”. Então cessavam batidas e arranhaduras e todos os assistentes ouviam com respeitosa atenção o discurso da adormecida.

Ela falava com vagar e de modo muito inteligível em puro alemão, o que surpreendia tanto mais quanto mais se sabia que ela era menos adiantada que seus colegas de colégio, nessa matéria, o que certamente era devido a uma doença dos olhos, que lhe dificultava o estudo. Suas palestras discorriam sobre a vida e as ações de Jesus desde os doze anos; sua presença no templo entre os escribas; seus benefícios à Humanidade e os seus milagres. Depois se entretinha em descrever os seus sofrimentos e censurava duramente os judeus por terem crucificado Jesus, apesar de seus atos de bondade e de suas bênçãos. Terminando, a menina dirigia a Deus uma fervorosa prece, pedindo que “lhe concedesse a graça de suportar com resignação os sofrimentos que lhe tinha enviado, pois que a havia escolhido para entrar em comunicação com o Espírito”. Pedia a Deus para não morrer ainda, pois era criança e não queria descer ao túmulo escuro. Terminadas as suas prédicas, recitava com uma voz solene o Pater noster, depois do que dizia: “Agora você pode vir”. Imediatamente recomeçavam as batidas e arranhaduras. Ela ainda falou duas vezes ao Espírito e, a cada uma delas, o batedor parava. Dizia ainda algumas palavras e acrescentava: “Agora você pode ir, em nome de Deus”. E despertava.

Durante essas palestras os olhos da menina ficavam bem fechados, mas os lábios se mexiam. As pessoas mais próximas do leito podiam observar-lhe os movimentos. A voz era pura e harmoniosa.

Despertando, perguntavam-lhe o que tinha visto e o que se havia passado. Ela respondia:

— O homem que vem me ver.

— Onde está ele?

— Perto de minha cama, com as outras pessoas.

— Você viu as outras pessoas?

— Vi todos os que estavam perto da minha cama.

É fácil compreender que tais manifestações encontrassem muitos incrédulos. Chegou-se mesmo a pensar que toda essa história era pura mistificação. Mas o pai era incapaz de palhaçadas, sobretudo de uma palhaçada que exigia toda a habilidade de um prestidigitador profissional. Ele goza da reputação de homem decente e honesto.

Para responder e fazer cessar a suspeita, a menina foi levada para uma casa estranha. Apenas lá chegando, ouviram-se as batidas e arranhaduras. Além disso, alguns dias antes ela tinha ido com a mãe a uma pequena aldeia chamada Capela, a cerca de meia légua de distância, à casa da viúva Klein. Como ela disse que estava cansada, deitaram-na num canapé, e imediatamente o mesmo fenômeno se produziu. Várias testemunhas o podem afirmar. Posto a criança tivesse um aspecto saudável, devia ser afetada por uma doença que, se não ficasse provada pelas manifestações acima relatadas, pelo menos pelos movimentos involuntários dos músculos e dos abalos nervosos.

Para terminar, faremos notar que há algumas semanas a menina foi levada ao Dr. Bentner, com quem ficou, a fim de que esse sábio pudesse estudar mais de perto os fenômenos em apreço. Desde então cessou todo barulho em casa da família Sänger, passando a produzir-se na do Dr. Bentner.

São estes, com toda a sua autenticidade, os fatos que se passaram. Entregamolos ao público sem emitir opinião. Possam os homens da Medicina dar-lhes em breve uma explicação satisfatória.

BLANCK

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