Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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SUA OPINIÃO SOBRE AS COMUNICAÇÕES EXTRACORPÓREAS
Vemos daqui certos escritores eméritos darem de ombros ao simples enunciado de uma história escrita pelos Espíritos. Dizem eles:

─ Como os seres do outro mundo podem vir controlar o nosso saber, controlarnos a nós, sábios da Terra? Ora esta! Isto é possível?

Senhores, não vos forçamos a acreditar; nem mesmo faremos o menor esforço no sentido de vos tirar tão cara ilusão. No interesse de vossa glória futura, vos convidamos, até, a inscrever os vossos nomes em caracteres indestrutíveis ao pé desta modesta sentença: Todos os partidários do Espiritismo são insensatos, pois a nós tão somente cabe julgar até onde vai o poder de Deus. Isto para que a posteridade não os esqueça. Ela própria verá se lhes deve dar lugar ao lado daqueles que pouco antes repeliram os homens a quem a Ciência e o reconhecimento público hoje erigem estátuas.

Eis aqui, contudo, um escritor cuja alta capacidade todos reconhecem e que, também ele, se arrisca a passar por um cabeça oca; também ele arvora a bandeira das ideias novas sobre as relações do mundo físico com o mundo extracorpóreo. Na Histoire de France, de Henri Martin, tomo 6, página 143, lemos o seguinte, a propósito de Joana d’Arc:

“... Existe na Humanidade uma ordem excepcional de fatos morais e físicos que aparentemente derrogam as leis ordinárias da Natureza: são os estados de êxtase e de sonambulismo, quer artificial, quer espontâneo, com todos os admiráveis fenômenos de perturbação dos sentidos, de insensibilidade total ou parcial do corpo, de exaltação da alma, de percepções fora de todas as condições da vida habitual. Os fatos dessa classe foram julgados sob pontos de vista completamente opostos. Vendo perturbadas ou deslocadas as relações costumeiras dos órgãos, os fisiologistas qualificam de doença os estados extático e sonambúlico. Admitem a realidade dos fenômenos que eles podem enquadrar na patologia e negam todo o resto, isto é, tudo aquilo que pareça estar fora das leis estabelecidas pela Física. A seus olhos a doença se converte em loucura, quando à alteração da ação dos órgãos se juntam alucinações dos sentidos e visões de objetos que só existem para o visionário.

“Um eminente fisiologista sustentou muito austeramente que Sócrates era um louco, porque julgava conversar com o seu demônio.

“Os místicos respondem não só afirmando que são reais os extraordinários fenômenos de percepções magnéticas, questões sobre as quais eles encontram inumeráveis auxiliares e inumeráveis testemunhas fora do misticismo, bem como sustentando que as visões dos extáticos têm objetos reais, certamente não vistos pelos olhos do corpo, mas pelos do Espírito. Para eles o êxtase é a ponte lançada do mundo visível ao invisível; o meio de comunicação do homem com os seres superiores; a lembrança e a promessa de uma existência melhor, de onde decaímos e que devemos reconquistar.

“Nesse debate, que partido devem tomar a História e a Filosofia?

“A História não poderia determinar com precisão os limites nem a extensão dos fenômenos, nem das faculdades extáticas e sonambúlicas, mas constata que ocorrem por toda parte; que os homens sempre lhes deram crédito; que eles exerceram uma ação considerável sobre os destinos do gênero humano; que se manifestaram não apenas entre os contemplativos, mas também entre os gênios mais potentes e mais ativos e a maioria dos grandes iniciados; que por mais desarrazoados que sejam muitos extáticos, nada existe de comum entre as divagações da loucura e as visões de tantos outros; que as visões podem ser ligadas a certas leis; que os extáticos de todos os lugares e de todos os tempos têm aquilo que se poderia chamar uma linguagem comum, a linguagem dos símbolos, da qual a poesia não é mais que um derivativo, linguagem que exprime, mais ou menos constantemente, as mesmas ideias e os mesmos sentimentos por intermédio das mesmas imagens.

“Talvez seja temerário concluir algo em nome da Filosofia. Entretanto, depois de haver reconhecido a importância moral desses fenômenos, por mais obscura que nos seja a sua lei e a sua finalidade; depois de havê-los distinguido em dois graus, um inferior, que não passa de uma estranha extensão ou deslocamento inexplicável da ação dos órgãos, e outro superior, que é uma prodigiosa exaltação das forças morais e intelectuais, o filósofo poderia, ao que nos parece, sustentar que a ilusão do inspirado consiste em tomar como revelação feita por seres exteriores, anjos, santos ou gênios, as revelações interiores dessa personalidade infinita que está em nós e que, por vezes, entre os melhores e os maiores, manifesta por lampejos de forças latentes que ultrapassam quase que incomensuravelmente as faculdades de nossa atual condição. Numa palavra, em linguagem acadêmica, são para nós fatos de subjetividade; na linguagem das antigas filosofias místicas e das mais adiantadas religiões, são revelações do ferouer[2] mazdeísta, do bom demônio (de Sócrates), do anjo da guarda, desse outro Eu que não passa do eu eterno, em plena posse de si mesmo, planando sobre o eu mergulhado nas sombras desta vida. É a figura do magnífico símbolo zoroastriano representado por toda parte em Persépolis e em Nínive: o ferouer alado ou o eu celeste, planando sobre a pessoa terrena.

“Negar a ação dos seres exteriores sobre o inspirado; não ver em suas pretensas manifestações mais que a forma dada às intuições do extático pelas crenças de seu tempo e de seu meio; buscar a solução do problema nas profundezas da personalidade humana, não é absolutamente pôr em dúvida a intervenção divina nos grandes fenômenos e nas grandes existências. O autor e sustentáculo de toda vida, por mais essencialmente independente que seja de cada criatura e de toda a criação; por mais distinta que seja de nosso ser contingente a sua personalidade absoluta, não é um ser exterior, isto é, estranho a nós e não é do exterior que ele nos fala. Quando a alma mergulha em si mesma, nela o encontra e, em toda inspiração salutar, nossa liberdade se associa à sua Providência. Aqui, como em tudo, é necessário prever o duplo perigo da incredulidade e da piedade mal esclarecida: uma não vê senão ilusões e impulsos puramente humanos; a outra se recusa a admitir qualquer parcela de ilusão, de ignorância ou de imperfeição onde só vê o dedo de Deus, como se os enviados de Deus deixassem de ser homens, homens de um certo tempo e de um certo lugar, e como se os relâmpagos sublimes que lhes atravessam a alma nela depositassem a Ciência universal e a perfeição absoluta. Nas mais evidentemente providenciais inspirações, os erros que vêm dos homens se misturam à verdade que vem de Deus. O ser infalível a ninguém comunica a sua infalibilidade.

“Julgamos que esta digressão não será tida por supérflua. Deveríamos pronunciar-nos sobre o caráter e sobre a obra daquela inspirada que no mais alto grau deu testemunho das faculdades extraordinárias de que falamos acima e que as aplicou à mais brilhante missão dos tempos modernos. Era preciso tentar emitir uma opinião à altura da categoria dos seres excepcionais à qual pertence Joana d’Arc.”



[2] Na religião avéstica, ser sobrenatural correspondente aos gênios dos romanos ou aos anjos guardiães da Religião Católica.



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